E se Deus é canhoto
e criou com a mão esquerda?
Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.
[Carlos Drummond de Andrade]
quarta-feira, setembro 26, 2007
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, enfim, converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, enfim, converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.
Fita verde no cabelo
Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam.
Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo.
Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia.
Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.
Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo.
Então, ela, mesma, era quem se dizia:
– Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou.
A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são.
E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vinha-lhe correndo, em pós.
Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa.
Vinha sobejadamente.
Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:
– Quem é?
– Sou eu… – e Fita-Verde descansou a voz. – Sou sua linda netinha, com cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou.
Vai, a avó, difícil, disse: – Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençoe.
Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou.
A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: – Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo.
Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:
– Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!
– É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta… – a avó murmurou.
– Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!
– É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta… – a avó suspirou.
– Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?
– É porque já não estou te vendo, nunca mais, minha netinha… – a avó ainda gemeu.
Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez. Gritou: – Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!…
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.
[João Guimarães Rosa]
Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo.
Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia.
Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.
Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo.
Então, ela, mesma, era quem se dizia:
– Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou.
A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são.
E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vinha-lhe correndo, em pós.
Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa.
Vinha sobejadamente.
Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:
– Quem é?
– Sou eu… – e Fita-Verde descansou a voz. – Sou sua linda netinha, com cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou.
Vai, a avó, difícil, disse: – Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençoe.
Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou.
A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: – Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo.
Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:
– Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!
– É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta… – a avó murmurou.
– Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!
– É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta… – a avó suspirou.
– Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?
– É porque já não estou te vendo, nunca mais, minha netinha… – a avó ainda gemeu.
Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez. Gritou: – Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!…
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.
[João Guimarães Rosa]
Osíris
- Ramsés, meu bem, acorde. Acho que tem alguém batendo.
- Como ousa, minha amada, minha irmã, ó lótus da primeira lua da primavera, acordar o filho do Sol? Espero a hora de Osíris.
- Sério, Ramsés. Ouço barulho de gente tentando arrombar a porta da pirâmide.
- Tá bem, tá bem, Nefertiti. Vou ver o que há.
- Tome cuidado, amor. Sofri tanto quando você morreu a primeira vez.
- Deixe comigo. Esses ladrõezinhos de tumbas vão ver uma coisa.
- Escutou?
- Escutei. Pã, pã, pã. Acho que é só um.
- Quem viria roubar, sozinho, a pirâmide de Ramsés?
- Sozinho?
- Sozinho.
- Nefertiti, me diga uma coisa. Como foi que aquele sacerdote de Bubástis disse que meu pai Osíris iria me ressuscitar?
- Tantos séculos, não lembro mais. Lembro que disse uma coisa.
- Que foi?
- Ele viria sozinho.
- Tem certeza?
- A certeza aos vivos pertence. Me parece, de qualquer forma.
- A merda é que eu não consigo me lembrar de nada daquela maldita frase. Mas acho que tinha alguma coisa que ver com o que você está dizendo. Sozinho, você disse?
- Pã, pã, pã, ouviu? Ele está sozinho.
- Pode ser um ladrão.
- E se for Osíris?
[Paulo Leminski]
- Como ousa, minha amada, minha irmã, ó lótus da primeira lua da primavera, acordar o filho do Sol? Espero a hora de Osíris.
- Sério, Ramsés. Ouço barulho de gente tentando arrombar a porta da pirâmide.
- Tá bem, tá bem, Nefertiti. Vou ver o que há.
- Tome cuidado, amor. Sofri tanto quando você morreu a primeira vez.
- Deixe comigo. Esses ladrõezinhos de tumbas vão ver uma coisa.
- Escutou?
- Escutei. Pã, pã, pã. Acho que é só um.
- Quem viria roubar, sozinho, a pirâmide de Ramsés?
- Sozinho?
- Sozinho.
- Nefertiti, me diga uma coisa. Como foi que aquele sacerdote de Bubástis disse que meu pai Osíris iria me ressuscitar?
- Tantos séculos, não lembro mais. Lembro que disse uma coisa.
- Que foi?
- Ele viria sozinho.
- Tem certeza?
- A certeza aos vivos pertence. Me parece, de qualquer forma.
- A merda é que eu não consigo me lembrar de nada daquela maldita frase. Mas acho que tinha alguma coisa que ver com o que você está dizendo. Sozinho, você disse?
- Pã, pã, pã, ouviu? Ele está sozinho.
- Pode ser um ladrão.
- E se for Osíris?
[Paulo Leminski]
domingo, setembro 23, 2007
Bendição
Lorsque, par un décret des puissances suprêmes,
Le Poète apparaît en ce monde ennuyé,
Sa mère épouvantée et pleine de blasphèmes
Crispe ses poings vers Dieu, qui la prend en pitié:
— "Ah! que n'ai-je mis bas tout un noeud de vipères,
Plutôt que de nourrir cette dérision!
Maudite soit la nuit aux plaisirs éphémères
Où mon ventre a conçu mon expiation!
Puisque tu m'as choisie entre toutes les femmes
Pour être le dégoût de mon triste mari,
Et que je ne puis pas rejeter dans les flammes,
Comme un billet d'amour, ce monstre rabougri,
Je ferai rejaillir ta haine qui m'accable
Sur l'instrument maudit de tes méchancetés,
Et je tordrai si bien cet arbre misérable,
Qu'il ne pourra pousser ses boutons empestés!»
Elle ravale ainsi l'écume de sa haine,
Et, ne comprenant pas les desseins éternels,
Elle-même prépare au fond de la Géhenne
Les bûchers consacrés aux crimes maternels.
Pourtant, sous la tutelle invisible d'un Ange,
L'Enfant déshérité s'enivre de soleil
Et dans tout ce qu'il boit et dans tout ce qu'il mange
Retrouve l'ambroisie et le nectar vermeil.
II joue avec le vent, cause avec le nuage,
Et s'enivre en chantant du chemin de la croix;
Et l'Esprit qui le suit dans son pèlerinage
Pleure de le voir gai comme un oiseau des bois.
Tous ceux qu'il veut aimer l'observent avec crainte,
Ou bien, s'enhardissant de sa tranquillité,
Cherchent à qui saura lui tirer une plainte,
Et font sur lui l'essai de leur férocité.
Dans le pain et le vin destinés à sa bouche
Ils mêlent de la cendre avec d'impurs crachats;
Avec hypocrisie ils jettent ce qu'il touche,
Et s'accusent d'avoir mis leurs pieds dans ses pas.
Sa femme va criant sur les places publiques:
"Puisqu'il me trouve assez belle pour m'adorer,
Je ferai le métier des idoles antiques,
Et comme elles je veux me faire redorer;
Et je me soûlerai de nard, d'encens, de myrrhe,
De génuflexions, de viandes et de vins,
Pour savoir si je puis dans un coeur qui m'admire
Usurper en riant les hommages divins!
Et, quand je m'ennuierai de ces farces impies,
Je poserai sur lui ma frêle et forte main;
Et mes ongles, pareils aux ongles des harpies,
Sauront jusqu'à son coeur se frayer un chemin.
Comme un tout jeune oiseau qui tremble et qui palpite,
J'arracherai ce coeur tout rouge de son sein,
Et, pour rassasier ma bête favorite
Je le lui jetterai par terre avec dédain!»
Vers le Ciel, où son oeil voit un trône splendide,
Le Poète serein lève ses bras pieux
Et les vastes éclairs de son esprit lucide
Lui dérobent l'aspect des peuples furieux:
— "Soyez béni, mon Dieu, qui donnez la souffrance
Comme un divin remède à nos impuretés
Et comme la meilleure et la plus pure essence
Qui prépare les forts aux saintes voluptés!
Je sais que vous gardez une place au Poète
Dans les rangs bienheureux des saintes Légions,
Et que vous l'invitez à l'éternelle fête
Des Trônes, des Vertus, des Dominations.
Je sais que la douleur est la noblesse unique
Où ne mordront jamais la terre et les enfers,
Et qu'il faut pour tresser ma couronne mystique
Imposer tous les temps et tous les univers.
Mais les bijoux perdus de l'antique Palmyre,
Les métaux inconnus, les perles de la mer,
Par votre main montés, ne pourraient pas suffire
A ce beau diadème éblouissant et clair;
Car il ne sera fait que de pure lumière,
Puisée au foyer saint des rayons primitifs,
Et dont les yeux mortels, dans leur splendeur entière,
Ne sont que des miroirs obscurcis et plaintifs!
Quando, por uma lei das supremas potências,
O Poeta surge aqui neste mundo enfadado,
Sua mãe a verter blasfêmias e insolências,
Crispa as mãos contra Deus, que a contempla apiedado:
-"Ah! tivesse eu gerado um rolo de serpentes,
Em vez de alimentar esta irrisão comigo!
Mal haja a noite em que, nos gozos inconscientes,
Meu ventre concebeu o meu próprio castigo!
"Já que entre todas as mulheres fui eleita
Para ser a abjeção de um desolado esposo,
E não posso queimar, como ao fogo se deita
Um bilhete de amor, este aleijão monstruoso,
"Eu farei recair teu ódio, que me esmaga,
Sobre o instrumento vil do teu rancor cruento,
E tão bem torcerei a árvore má, que a praga
Não lhe permitirá deitar um só rebento!"
Engole a espuma, então, do seu ódio e, atordoada,
Sem poder compreender os desígnios eternos,
Ela mesma prepara a fogueira votada
Aos crimes maternais no fundo dos Infernos.
Sob a guarda, porém, de um Anjo transparente,
Embriaga-se de sol o Filho desherdado,
E em tudo quanto come e quanto bebe sente
um gosto de ambrosia e nectar encarnado.
Fala à nuvem do céu, brinca com a ventania
E faz da Via Sacra um caminho de festa;
E o Espírito que o segue em sua romaria
Chora ao vê-lo feliz como ave da floresta.
Os que ele quer amar olham-no com receio,
Ou confiando demais na sua amenidade,
Empenham-se em tirar-lhe um queixume do seio,
E experimentam nele a sua atrocidade.
Hipócritas, no vinho e no pão que o alimentam
Eles misturam cinza a impuras cusparadas;
Rejeitam tudo o que ele toca, e se lamentam
Por ter sujado os pés seguindo-lhe as pegadas.
Sua mulher percorre as ruas exclamando:
- "Se ele acha que sou bela e quer idolatrar-me,
Eu serei como os velhos ídolos, e quando
Me aprouver saberei fazê-lo redoirar-me;
"E eu me embebedarei de mirra, incenso e nardo,
E de genuflexões e viandas e licores,
Para ver se no seu coração ainda guardo
O poder de usurpar os divinos louvores!"
"E,quando eu me fartar dessas impias orgias,
Sobre ele pousarei mão forte e delgada;
E as minhas unhas, como as unhas das harpias,
Hão de saber rasgar no seu peito uma entrada.
"Como ave nova que estremece e que palpita,
Arrancar-lhe-ei do seio o coração aceso,
E, dando-o de comer à fera favorita,
Hei de lançá-lo ao chão com todo o meu desprezo!"
Para o Céu, em que avista um trono refulgente,
O Poeta ergue, sereno, as suas mãos piedosas,
E os imensos clarões de sua alma de vidente
Ofuscam-lhe a visão das multidões furiosas:
- "Bendito vós, meu Deus, que dais o sofrimento
Como um filtro divino às nossas imundícias,
E também o melhor e mais puro alimento
Que aos fortes predispõe para as santas delícias!
"Eu sei que reservais um lugar para o Poeta
Nas bem-aventuradas filas das Legiões,
E sempre o convidais para a festa secreta
Dos Tronos, das Virtudes, das Dominações.
"Eu sei também que a dor é a nobreza suprema
Sempre vedada à terra e aos infernos adversos,
E que para tecer meu místico diadema
Fôra mister impor os tempos e universos
"Mas as jóias fatais da secular Palmira,
Inéditos metais, ou pérolas do oceano,
Encastoados por vós, nem isso conseguira
Compor esse diadema ardente e soberano;
"Porque ele só da luz mais pura será feito,
Vinda do santo lar dos raios primitivos,
De que os olhos mortais, no seu fulgor perfeito,
Não são mais do que espelhos tristes, negativos!"
[Tradução: Guilherme de Almeida]
Le Poète apparaît en ce monde ennuyé,
Sa mère épouvantée et pleine de blasphèmes
Crispe ses poings vers Dieu, qui la prend en pitié:
— "Ah! que n'ai-je mis bas tout un noeud de vipères,
Plutôt que de nourrir cette dérision!
Maudite soit la nuit aux plaisirs éphémères
Où mon ventre a conçu mon expiation!
Puisque tu m'as choisie entre toutes les femmes
Pour être le dégoût de mon triste mari,
Et que je ne puis pas rejeter dans les flammes,
Comme un billet d'amour, ce monstre rabougri,
Je ferai rejaillir ta haine qui m'accable
Sur l'instrument maudit de tes méchancetés,
Et je tordrai si bien cet arbre misérable,
Qu'il ne pourra pousser ses boutons empestés!»
Elle ravale ainsi l'écume de sa haine,
Et, ne comprenant pas les desseins éternels,
Elle-même prépare au fond de la Géhenne
Les bûchers consacrés aux crimes maternels.
Pourtant, sous la tutelle invisible d'un Ange,
L'Enfant déshérité s'enivre de soleil
Et dans tout ce qu'il boit et dans tout ce qu'il mange
Retrouve l'ambroisie et le nectar vermeil.
II joue avec le vent, cause avec le nuage,
Et s'enivre en chantant du chemin de la croix;
Et l'Esprit qui le suit dans son pèlerinage
Pleure de le voir gai comme un oiseau des bois.
Tous ceux qu'il veut aimer l'observent avec crainte,
Ou bien, s'enhardissant de sa tranquillité,
Cherchent à qui saura lui tirer une plainte,
Et font sur lui l'essai de leur férocité.
Dans le pain et le vin destinés à sa bouche
Ils mêlent de la cendre avec d'impurs crachats;
Avec hypocrisie ils jettent ce qu'il touche,
Et s'accusent d'avoir mis leurs pieds dans ses pas.
Sa femme va criant sur les places publiques:
"Puisqu'il me trouve assez belle pour m'adorer,
Je ferai le métier des idoles antiques,
Et comme elles je veux me faire redorer;
Et je me soûlerai de nard, d'encens, de myrrhe,
De génuflexions, de viandes et de vins,
Pour savoir si je puis dans un coeur qui m'admire
Usurper en riant les hommages divins!
Et, quand je m'ennuierai de ces farces impies,
Je poserai sur lui ma frêle et forte main;
Et mes ongles, pareils aux ongles des harpies,
Sauront jusqu'à son coeur se frayer un chemin.
Comme un tout jeune oiseau qui tremble et qui palpite,
J'arracherai ce coeur tout rouge de son sein,
Et, pour rassasier ma bête favorite
Je le lui jetterai par terre avec dédain!»
Vers le Ciel, où son oeil voit un trône splendide,
Le Poète serein lève ses bras pieux
Et les vastes éclairs de son esprit lucide
Lui dérobent l'aspect des peuples furieux:
— "Soyez béni, mon Dieu, qui donnez la souffrance
Comme un divin remède à nos impuretés
Et comme la meilleure et la plus pure essence
Qui prépare les forts aux saintes voluptés!
Je sais que vous gardez une place au Poète
Dans les rangs bienheureux des saintes Légions,
Et que vous l'invitez à l'éternelle fête
Des Trônes, des Vertus, des Dominations.
Je sais que la douleur est la noblesse unique
Où ne mordront jamais la terre et les enfers,
Et qu'il faut pour tresser ma couronne mystique
Imposer tous les temps et tous les univers.
Mais les bijoux perdus de l'antique Palmyre,
Les métaux inconnus, les perles de la mer,
Par votre main montés, ne pourraient pas suffire
A ce beau diadème éblouissant et clair;
Car il ne sera fait que de pure lumière,
Puisée au foyer saint des rayons primitifs,
Et dont les yeux mortels, dans leur splendeur entière,
Ne sont que des miroirs obscurcis et plaintifs!
Quando, por uma lei das supremas potências,
O Poeta surge aqui neste mundo enfadado,
Sua mãe a verter blasfêmias e insolências,
Crispa as mãos contra Deus, que a contempla apiedado:
-"Ah! tivesse eu gerado um rolo de serpentes,
Em vez de alimentar esta irrisão comigo!
Mal haja a noite em que, nos gozos inconscientes,
Meu ventre concebeu o meu próprio castigo!
"Já que entre todas as mulheres fui eleita
Para ser a abjeção de um desolado esposo,
E não posso queimar, como ao fogo se deita
Um bilhete de amor, este aleijão monstruoso,
"Eu farei recair teu ódio, que me esmaga,
Sobre o instrumento vil do teu rancor cruento,
E tão bem torcerei a árvore má, que a praga
Não lhe permitirá deitar um só rebento!"
Engole a espuma, então, do seu ódio e, atordoada,
Sem poder compreender os desígnios eternos,
Ela mesma prepara a fogueira votada
Aos crimes maternais no fundo dos Infernos.
Sob a guarda, porém, de um Anjo transparente,
Embriaga-se de sol o Filho desherdado,
E em tudo quanto come e quanto bebe sente
um gosto de ambrosia e nectar encarnado.
Fala à nuvem do céu, brinca com a ventania
E faz da Via Sacra um caminho de festa;
E o Espírito que o segue em sua romaria
Chora ao vê-lo feliz como ave da floresta.
Os que ele quer amar olham-no com receio,
Ou confiando demais na sua amenidade,
Empenham-se em tirar-lhe um queixume do seio,
E experimentam nele a sua atrocidade.
Hipócritas, no vinho e no pão que o alimentam
Eles misturam cinza a impuras cusparadas;
Rejeitam tudo o que ele toca, e se lamentam
Por ter sujado os pés seguindo-lhe as pegadas.
Sua mulher percorre as ruas exclamando:
- "Se ele acha que sou bela e quer idolatrar-me,
Eu serei como os velhos ídolos, e quando
Me aprouver saberei fazê-lo redoirar-me;
"E eu me embebedarei de mirra, incenso e nardo,
E de genuflexões e viandas e licores,
Para ver se no seu coração ainda guardo
O poder de usurpar os divinos louvores!"
"E,quando eu me fartar dessas impias orgias,
Sobre ele pousarei mão forte e delgada;
E as minhas unhas, como as unhas das harpias,
Hão de saber rasgar no seu peito uma entrada.
"Como ave nova que estremece e que palpita,
Arrancar-lhe-ei do seio o coração aceso,
E, dando-o de comer à fera favorita,
Hei de lançá-lo ao chão com todo o meu desprezo!"
Para o Céu, em que avista um trono refulgente,
O Poeta ergue, sereno, as suas mãos piedosas,
E os imensos clarões de sua alma de vidente
Ofuscam-lhe a visão das multidões furiosas:
- "Bendito vós, meu Deus, que dais o sofrimento
Como um filtro divino às nossas imundícias,
E também o melhor e mais puro alimento
Que aos fortes predispõe para as santas delícias!
"Eu sei que reservais um lugar para o Poeta
Nas bem-aventuradas filas das Legiões,
E sempre o convidais para a festa secreta
Dos Tronos, das Virtudes, das Dominações.
"Eu sei também que a dor é a nobreza suprema
Sempre vedada à terra e aos infernos adversos,
E que para tecer meu místico diadema
Fôra mister impor os tempos e universos
"Mas as jóias fatais da secular Palmira,
Inéditos metais, ou pérolas do oceano,
Encastoados por vós, nem isso conseguira
Compor esse diadema ardente e soberano;
"Porque ele só da luz mais pura será feito,
Vinda do santo lar dos raios primitivos,
De que os olhos mortais, no seu fulgor perfeito,
Não são mais do que espelhos tristes, negativos!"
[Tradução: Guilherme de Almeida]
sábado, setembro 22, 2007
Consolo na praia
Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
[Carlos Drummond de Andrade]
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
[Carlos Drummond de Andrade]
quarta-feira, setembro 19, 2007
Gonçalves Dias
Olhos verdes
Eles verdes são,
E têm por usança
Na cor esperança
E nas obras não
São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança,
Uns olhos por que morri;
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como duas esmeraldas,
Iguais na forma e na cor,
Têm luz mais branda e mais forte,
Diz uma – vida, outra – morte;
Uma – loucura, outra – amor.
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
São verdes da cor do prado,
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflamam,
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
São uns olhos verdes, verdes,
Que podem também brilhar;
Não são de um verde embaçado,
Mas verdes da cor do prado,
Mas verdes da cor do mar.
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como se lê num espelho,
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma,
Também refletem os céus;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós, ó meus amigos,
Se vos perguntam por mi,
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos cor de esperança,
De uns olhos verdes que vi!
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da cor do mar:
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos,
Que ai de mi!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!
Eles verdes são,
E têm por usança
Na cor esperança
E nas obras não
São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança,
Uns olhos por que morri;
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como duas esmeraldas,
Iguais na forma e na cor,
Têm luz mais branda e mais forte,
Diz uma – vida, outra – morte;
Uma – loucura, outra – amor.
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
São verdes da cor do prado,
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflamam,
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
São uns olhos verdes, verdes,
Que podem também brilhar;
Não são de um verde embaçado,
Mas verdes da cor do prado,
Mas verdes da cor do mar.
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como se lê num espelho,
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma,
Também refletem os céus;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós, ó meus amigos,
Se vos perguntam por mi,
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos cor de esperança,
De uns olhos verdes que vi!
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da cor do mar:
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos,
Que ai de mi!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!
terça-feira, setembro 18, 2007
Safo, fr. 31 - Outra tradução
Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.
Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.
Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo.
Tradução: Décio Pignatari
Tradução de Jaa Torrano.
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.
Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.
Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo.
Tradução: Décio Pignatari
Tradução de Jaa Torrano.
Safo - fr.55 LP
Quando morreres, hás-de jazer sem que haja no futuro
Memória de ti nem saudade. É que não tiveste parte
Nas rosas de Piéria. Invisível, andarás a esvoaçar
No Hades, entre os mortos impotentes.
Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira.
Memória de ti nem saudade. É que não tiveste parte
Nas rosas de Piéria. Invisível, andarás a esvoaçar
No Hades, entre os mortos impotentes.
Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira.
domingo, setembro 16, 2007
Falso diálogo entre Pessoa e Caeiro
[Pessoa]- a chuva me deixa triste...
[Caeiro] - a mim me deixa molhado.
(José Paulo Paes)
[Caeiro] - a mim me deixa molhado.
(José Paulo Paes)
O Guardador de rebanhos
X
"Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?"
"Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti, o que te diz?"
"Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram."
"Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
e a mentira está em ti."
"Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?"
"Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti, o que te diz?"
"Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram."
"Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
e a mentira está em ti."
Fradique Mendes
A Carlos Baudelaire
(Autor das Flores do Mal)
Ó Carlos Baudelaire! ó poeta impassível!
Fino lábio a sorrir, sob um estranho olhar!
Tua boca descreve o criminoso, o horrível,
Enquanto a tua voz parece só cantar...
Indiferente, vais como a desdém pisando
Um chão de vício e horror,com passo virginal
Na tua mão gantée,trazes,como brincando,
Um sinistro bouquet, a negra flor do mal!
O tétrico - o que faz tremer dentro do peito
O coração dos mais -, poeta, é para ti
Só pretexto talvez dalgum feliz conceito,
Um verso original, uma rima que ri.
Dante do Boulevard,cantas o desespero,
ao som duma ária vã, como um fútil rondó...
Pintor, deixa-nos ver a alma escura de Nero,
Com o negligé e a cor do Boucheau ou Watteau...
Essa fronte de neve, esse crânio de gelo,
Se os estalasse alguém veria, creio eu,
Surgir estranho ser, Byron, Polichinelo,
Confundidos num só, co'a face d'Asmodeu!
É o mal com consciência, e tanta, e tão terrível,
Que cai na afectação, nas frases recocó ...
E esse olhar fixo e estranho e essa fronte impassível:
D’um frio mortal, pior que pranto e dó ...
Sim, descer onde tu desces – na Primavera
Ver só o insecto vil, que rói a bela flor -
(Em despeito do estilo e da rima severa)
Não se faz sem sofrer ... tu conheces a dor!
Tu sabes o que é dor, ó sereno estilista!
Sob o fraque do dandy há em ti, bem o vês,
Um poeta, um leão, um demónio, que o artista
Pode a custo conter, domar, calcar aos pés!
És o símbolo, tu, dum século fantasma,
Tão sábio que é ateu, e já não quer chorar ...
Que tem cãs sem ser velho, e que de nada pasma
Olhando o mundo à luz do gás do Boulevard ...
Somos todos assim - um triste olhar que chora
E encobre, chocarreira, a luneta do tom ...
Um esqueleto frio e horrível – mas por fora
Irréprochablement vestido à Benoiton!...
Paris: dia do enterro de Baudelaire: 7 de Setembro de 1867
[Antero de Quental]
(Autor das Flores do Mal)
Ó Carlos Baudelaire! ó poeta impassível!
Fino lábio a sorrir, sob um estranho olhar!
Tua boca descreve o criminoso, o horrível,
Enquanto a tua voz parece só cantar...
Indiferente, vais como a desdém pisando
Um chão de vício e horror,com passo virginal
Na tua mão gantée,trazes,como brincando,
Um sinistro bouquet, a negra flor do mal!
O tétrico - o que faz tremer dentro do peito
O coração dos mais -, poeta, é para ti
Só pretexto talvez dalgum feliz conceito,
Um verso original, uma rima que ri.
Dante do Boulevard,cantas o desespero,
ao som duma ária vã, como um fútil rondó...
Pintor, deixa-nos ver a alma escura de Nero,
Com o negligé e a cor do Boucheau ou Watteau...
Essa fronte de neve, esse crânio de gelo,
Se os estalasse alguém veria, creio eu,
Surgir estranho ser, Byron, Polichinelo,
Confundidos num só, co'a face d'Asmodeu!
É o mal com consciência, e tanta, e tão terrível,
Que cai na afectação, nas frases recocó ...
E esse olhar fixo e estranho e essa fronte impassível:
D’um frio mortal, pior que pranto e dó ...
Sim, descer onde tu desces – na Primavera
Ver só o insecto vil, que rói a bela flor -
(Em despeito do estilo e da rima severa)
Não se faz sem sofrer ... tu conheces a dor!
Tu sabes o que é dor, ó sereno estilista!
Sob o fraque do dandy há em ti, bem o vês,
Um poeta, um leão, um demónio, que o artista
Pode a custo conter, domar, calcar aos pés!
És o símbolo, tu, dum século fantasma,
Tão sábio que é ateu, e já não quer chorar ...
Que tem cãs sem ser velho, e que de nada pasma
Olhando o mundo à luz do gás do Boulevard ...
Somos todos assim - um triste olhar que chora
E encobre, chocarreira, a luneta do tom ...
Um esqueleto frio e horrível – mas por fora
Irréprochablement vestido à Benoiton!...
Paris: dia do enterro de Baudelaire: 7 de Setembro de 1867
[Antero de Quental]
Uma carniça - Baudelaire
Rappelez-vous l'objet que nous vîmes, mon âme,
Ce beau matin d'été si doux:
Au détour d'un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux,
Les jambes en l'air comme une femme lubrique,
Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d'une façon monchalante et cynique
Son ventre plein de exhalaisons.
Le soleil rayonnait sur cette pourriture
Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu'ensemble elle avait joint.
Et le ciel regardait la carcasse superbe
Comme une fleur s'épanouir;
La puanteur était si forte que sur l'herbe
Vous crûtes vous évanouir.
Les mouches bordonnaient sur ce ventre putride,
D'où sortaient de noirs bataillons,
De larves qui coulaient comme um épais liquide,
Le long de ces vivants haillons.
Tout cela descendait, montait comme une vague,
Ou s'élançait et pétillant;
On eût dit que le corps, enflé d'un souffle vague,
Vivait en se multipliant.
Et ce monde rendait une étrange musique
Comme l'eau courante et le vent,
Ou le grain qu'un vanneur d'un mouvement rhytmique
Agite et tourne dans son van.
Les formes s'effaçaient et n'étaient plus qu'un rêve,
Une êbauche lente à venir,
Sur la toile oubliée, et que l'artiste achève
Seulement par le souvenir.
Derríere les rochers une chienne inquiète
Nous regardait d'un oeil fâché,
Épiant le moment de reprendre au squellete
Le morceau qu'elle avait lâché.
-Et pourtant vous seres semblale à cette ordure,
A cette horrible infection,
Étoile de meus yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!
Oui! telle vous serez, ô la reine des grâces,
Après les derniers sacrements,
Quand vous ires sous l'herbe et les floraisons grasses
Moisir parmi des ossements.
Allors, ô ma beauté! dites à la vermine
Qui vous mangera de basers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés!
Recorda o objeto vil que vimos, numa quieta,
Linda manhã de doce estio:
Na curva de um caminho uma carniça abjeta
Sobre um leito pedrento e frio,
As pernas para o ar, como uma mulher lasciva,
Entre letais transpirações,
Abria de maneira lânguida e ostensiva
Seu ventre a estuar de exalações.
Reverberava o sol sobre aquela torpeza,
Para cozê-la a ponto, e para,
Centuplicado, devolver à Natureza
Tudo quanto ali ela juntara.
E o céu olhava do alto a soberba carcassa
Como uma flor a se oferecer;
Tão forte era o fedor que sobre a relva crassa
Pensaste até desfalecer.
Zumbiam moscas sobre esse pútrido ventre,
De onde em bandos negros e esquivos
Larvas se escoavam como um grosso líquido entre
Esses trapos de carne, vivos.
Isso tudo ia e vinha,como uma vaga,
Ou se espalhava a borbulhar;
Dir-se-ia que esse corpo, a uma bafagem vaga,
Vivia a se multiplicar.
E esse mundo fazia a música exquisita
Do vento, ou então da água-corrente,
Ou do grão que, mexendo, o joeirador agita
Na joeira, cadenciadamente.
As formas eram já mera ilusão da vista,
Um debuxo que custa a vir,
Sobre a tela esquecida, e que mais tarde o artista
Só de cór consegue concluir.
Entre as rochas,inquieta, uma pobre cadela
Fixava em nós o olhar zangado,
À espera de poder ir retomar àquela
Carcassa pobre o seu bocado.
- E no entanto, hás de ser igual a esse monturo,
Igual a esse infeccioso horror,
Astro do meu olhar, sol do meu ser obscuro,
Tu, meu anjo, tu, meu amor!
Sim!tal serás um dia, ó tu, toda graciosa,
Quando, ungida e sacramentada,
Tu fores sob a relva e a floração viçosa
Mofar junto a qualquer ossada.
Dize então, ó beleza! aos vermes roedores
Que de beijos te comerão,
Que eu guardo a forma e a essência ideal dos meus amores
Em plena decomposição!
(Tradução: Guilherme de Almeida)
Ce beau matin d'été si doux:
Au détour d'un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux,
Les jambes en l'air comme une femme lubrique,
Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d'une façon monchalante et cynique
Son ventre plein de exhalaisons.
Le soleil rayonnait sur cette pourriture
Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu'ensemble elle avait joint.
Et le ciel regardait la carcasse superbe
Comme une fleur s'épanouir;
La puanteur était si forte que sur l'herbe
Vous crûtes vous évanouir.
Les mouches bordonnaient sur ce ventre putride,
D'où sortaient de noirs bataillons,
De larves qui coulaient comme um épais liquide,
Le long de ces vivants haillons.
Tout cela descendait, montait comme une vague,
Ou s'élançait et pétillant;
On eût dit que le corps, enflé d'un souffle vague,
Vivait en se multipliant.
Et ce monde rendait une étrange musique
Comme l'eau courante et le vent,
Ou le grain qu'un vanneur d'un mouvement rhytmique
Agite et tourne dans son van.
Les formes s'effaçaient et n'étaient plus qu'un rêve,
Une êbauche lente à venir,
Sur la toile oubliée, et que l'artiste achève
Seulement par le souvenir.
Derríere les rochers une chienne inquiète
Nous regardait d'un oeil fâché,
Épiant le moment de reprendre au squellete
Le morceau qu'elle avait lâché.
-Et pourtant vous seres semblale à cette ordure,
A cette horrible infection,
Étoile de meus yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!
Oui! telle vous serez, ô la reine des grâces,
Après les derniers sacrements,
Quand vous ires sous l'herbe et les floraisons grasses
Moisir parmi des ossements.
Allors, ô ma beauté! dites à la vermine
Qui vous mangera de basers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés!
Recorda o objeto vil que vimos, numa quieta,
Linda manhã de doce estio:
Na curva de um caminho uma carniça abjeta
Sobre um leito pedrento e frio,
As pernas para o ar, como uma mulher lasciva,
Entre letais transpirações,
Abria de maneira lânguida e ostensiva
Seu ventre a estuar de exalações.
Reverberava o sol sobre aquela torpeza,
Para cozê-la a ponto, e para,
Centuplicado, devolver à Natureza
Tudo quanto ali ela juntara.
E o céu olhava do alto a soberba carcassa
Como uma flor a se oferecer;
Tão forte era o fedor que sobre a relva crassa
Pensaste até desfalecer.
Zumbiam moscas sobre esse pútrido ventre,
De onde em bandos negros e esquivos
Larvas se escoavam como um grosso líquido entre
Esses trapos de carne, vivos.
Isso tudo ia e vinha,como uma vaga,
Ou se espalhava a borbulhar;
Dir-se-ia que esse corpo, a uma bafagem vaga,
Vivia a se multiplicar.
E esse mundo fazia a música exquisita
Do vento, ou então da água-corrente,
Ou do grão que, mexendo, o joeirador agita
Na joeira, cadenciadamente.
As formas eram já mera ilusão da vista,
Um debuxo que custa a vir,
Sobre a tela esquecida, e que mais tarde o artista
Só de cór consegue concluir.
Entre as rochas,inquieta, uma pobre cadela
Fixava em nós o olhar zangado,
À espera de poder ir retomar àquela
Carcassa pobre o seu bocado.
- E no entanto, hás de ser igual a esse monturo,
Igual a esse infeccioso horror,
Astro do meu olhar, sol do meu ser obscuro,
Tu, meu anjo, tu, meu amor!
Sim!tal serás um dia, ó tu, toda graciosa,
Quando, ungida e sacramentada,
Tu fores sob a relva e a floração viçosa
Mofar junto a qualquer ossada.
Dize então, ó beleza! aos vermes roedores
Que de beijos te comerão,
Que eu guardo a forma e a essência ideal dos meus amores
Em plena decomposição!
(Tradução: Guilherme de Almeida)
sábado, setembro 15, 2007
Simônides de Céos
Dos que, por fim, tombaram nas Termópilas,
Bela foi a morte e cintilante a cavalgada.
Do pó destes varões o altar nasceu.
Em vez do pranto, o seu emblema foi a guerra.
Com sangue a glória se escreveu, com lágrima.
Não vão gastá-la os tempos, nem bolores.
Esta sepultura gloriosa guarda
A fama helena em toda terra, tal
Como Leônidas de Esparta a mereceu:
Qual signo de ingente valentia,
E de um destino bravo, imperecível.
(Diehl 5)
Tradução: Antônio Medina Rodrigues.
Bela foi a morte e cintilante a cavalgada.
Do pó destes varões o altar nasceu.
Em vez do pranto, o seu emblema foi a guerra.
Com sangue a glória se escreveu, com lágrima.
Não vão gastá-la os tempos, nem bolores.
Esta sepultura gloriosa guarda
A fama helena em toda terra, tal
Como Leônidas de Esparta a mereceu:
Qual signo de ingente valentia,
E de um destino bravo, imperecível.
(Diehl 5)
Tradução: Antônio Medina Rodrigues.
Horácio I, 3
Sic te diua potens Cypri,
sic fratres Helenae, lucida sidera,
uentorumque regat pater
obstrictis aliis praeter Iapyga,
nauis, quae tibi creditum
debes Vergilium; finibus Atticis
reddas incolumem precor
et serues animae dimidium meae.
Illi robur et aes triplex
circa pectus erat, qui fragilem truci
commisit pelago ratem
primus, nec timuit praecipitem Africum
decertantem Aquilonibus
nec tristis Hyadas nec rabiem Noti,
quo non arbiter Hadriae
maior, tollere seu ponere uolt freta.
Quem mortis timuit gradum
qui siccis oculis monstra natantia,
qui uidit mare turbidum et
infamis scopulos Acroceraunia?
Nequicquam deus abscidit
prudens Oceano dissociabili
terras, si tamen impiae
non tangenda rates transiliunt uada.
Audax omnia perpeti
gens humana ruit per uetitum nefas;
audax Iapeti genus
ignem fraude mala gentibus intulit;
post ignem aetheria domo
subductum macies et noua febrium
terris incubuit cohors
semotique prius tarda necessitas
leti corripuit gradum.
Expertus uacuum Daedalus aera
pennis non homini datis;
perrupit Acheronta Herculeus labor.
Nil mortalibus ardui est;
caelum ipsum petimus stultitia neque
per nostrum patimur scelus
iracunda Iouem ponere fulmina.
Assim a deusa poderosa em Chipre,
Assim os irmãos de Helena, brilhantes
Astros, e o rei dos ventos, só com jápis,
Prendendo os mais, te reja,
Ó nau, que és de Vergílio devedora,
Que a ti se confiou, rogo-te, o ponhas
Salvo nas terras áticas e guardes
Metade de minha alma.
Enzinho e tresdobrado bronze havia
Em torno ao peito, quem ao pego iroso
O baixel frágil cometeu primeiro;
Nem já temeu o ábrego.
Com os aquilões brigando impetuoso,
Híadas tristes, nem de Noto a raiva;
Que é de Adria o mor senhor, ou erguer queira,
Ou amainar as ondas.
Que gênero temeu de morte aquele,
Que a olhos secos viu nadantes monstros,
Que viu túrgido mar, e Acroceraunos
Infamados cachopos?
Em vão, próvido Deus com o oceano
As terras retalhou insociáveis,
Se contudo os baixéis ímpios trespassam
Os não tocandos mares.
Audaz a sofrer tudo, a gente humana
Por defesas maldades se despenha;
Audaz a prole de Jápeto às gentes
Com fraude iníqua o fogo
Trouxe: depois que o fogo à casa etérea
Se furtou, a magreza e nova tropa
De febre sobreveio à terra e o fado
Vagaroso da morte,
Dantes remota, apressurou o passo
Tentou com penas ao mortal não dadas,
Dédalo o ar vazio: o Aqueronte
Rompeu trabalho hercúleo.
Nada aos mortais é árduo: cometemos
Loucos o mesmo céu; e não deixamos
Com os nossos crimes, que deponha Jove
Os iracundos raios.
(Tradução: Elpino Duriense)
sic fratres Helenae, lucida sidera,
uentorumque regat pater
obstrictis aliis praeter Iapyga,
nauis, quae tibi creditum
debes Vergilium; finibus Atticis
reddas incolumem precor
et serues animae dimidium meae.
Illi robur et aes triplex
circa pectus erat, qui fragilem truci
commisit pelago ratem
primus, nec timuit praecipitem Africum
decertantem Aquilonibus
nec tristis Hyadas nec rabiem Noti,
quo non arbiter Hadriae
maior, tollere seu ponere uolt freta.
Quem mortis timuit gradum
qui siccis oculis monstra natantia,
qui uidit mare turbidum et
infamis scopulos Acroceraunia?
Nequicquam deus abscidit
prudens Oceano dissociabili
terras, si tamen impiae
non tangenda rates transiliunt uada.
Audax omnia perpeti
gens humana ruit per uetitum nefas;
audax Iapeti genus
ignem fraude mala gentibus intulit;
post ignem aetheria domo
subductum macies et noua febrium
terris incubuit cohors
semotique prius tarda necessitas
leti corripuit gradum.
Expertus uacuum Daedalus aera
pennis non homini datis;
perrupit Acheronta Herculeus labor.
Nil mortalibus ardui est;
caelum ipsum petimus stultitia neque
per nostrum patimur scelus
iracunda Iouem ponere fulmina.
Assim a deusa poderosa em Chipre,
Assim os irmãos de Helena, brilhantes
Astros, e o rei dos ventos, só com jápis,
Prendendo os mais, te reja,
Ó nau, que és de Vergílio devedora,
Que a ti se confiou, rogo-te, o ponhas
Salvo nas terras áticas e guardes
Metade de minha alma.
Enzinho e tresdobrado bronze havia
Em torno ao peito, quem ao pego iroso
O baixel frágil cometeu primeiro;
Nem já temeu o ábrego.
Com os aquilões brigando impetuoso,
Híadas tristes, nem de Noto a raiva;
Que é de Adria o mor senhor, ou erguer queira,
Ou amainar as ondas.
Que gênero temeu de morte aquele,
Que a olhos secos viu nadantes monstros,
Que viu túrgido mar, e Acroceraunos
Infamados cachopos?
Em vão, próvido Deus com o oceano
As terras retalhou insociáveis,
Se contudo os baixéis ímpios trespassam
Os não tocandos mares.
Audaz a sofrer tudo, a gente humana
Por defesas maldades se despenha;
Audaz a prole de Jápeto às gentes
Com fraude iníqua o fogo
Trouxe: depois que o fogo à casa etérea
Se furtou, a magreza e nova tropa
De febre sobreveio à terra e o fado
Vagaroso da morte,
Dantes remota, apressurou o passo
Tentou com penas ao mortal não dadas,
Dédalo o ar vazio: o Aqueronte
Rompeu trabalho hercúleo.
Nada aos mortais é árduo: cometemos
Loucos o mesmo céu; e não deixamos
Com os nossos crimes, que deponha Jove
Os iracundos raios.
(Tradução: Elpino Duriense)
Calino e Tirteu
Calino
Até que ponto, inertes, folgareis?
Vergonha não vos dá dos que na luta
A pátria amparam, ou quereis, talvez
A paz, quando os demais no ardor se ralam?
Mesmo a morrer, a lança arremessai,
Também na morte é que se ganha a glória,
E salva é a esposa, o filho, e seus pais.
Ah, perecer, por eles, é vitória!
Então firmai a lança, e ao peito vosso
O escudo firme armai contra o rival!
Fugir, choramingar, que ninguém possa,
Ou mesmo crer-se ileso e imortal,
Ou sob a cama fique em medo ou possa
Os pares esquecer na hora fatal.
Do ser que é macho sobe sempre a fama,
O herói é o galardão do chão natal,
Diz não ao resto, quando a pátria o chama.
Tirteu
Belo é tombar em sangue um bravo herói
Que lute pela pátria lá na frente!
Em mendicância andar? Nada há pior
Que um homem se arrastar como indigente,
Ao léu seu pai e a mãe jogada às ruas,
Filhos e esposa a receber desdéns,
De todos a quem peçam de mãos nuas.
Ofende o peito, enluta a raça quem
Suporta o riso alheio e escarninho.
Se mal andamos nós sem um vintém,
E sem que um sonho bom nos encaminhe,
Morramos pela pátria, nosso bem,
Que é vil à vida assim ter um carinho.
(Traduções: Antônio Medina Rodrigues)
Até que ponto, inertes, folgareis?
Vergonha não vos dá dos que na luta
A pátria amparam, ou quereis, talvez
A paz, quando os demais no ardor se ralam?
Mesmo a morrer, a lança arremessai,
Também na morte é que se ganha a glória,
E salva é a esposa, o filho, e seus pais.
Ah, perecer, por eles, é vitória!
Então firmai a lança, e ao peito vosso
O escudo firme armai contra o rival!
Fugir, choramingar, que ninguém possa,
Ou mesmo crer-se ileso e imortal,
Ou sob a cama fique em medo ou possa
Os pares esquecer na hora fatal.
Do ser que é macho sobe sempre a fama,
O herói é o galardão do chão natal,
Diz não ao resto, quando a pátria o chama.
Tirteu
Belo é tombar em sangue um bravo herói
Que lute pela pátria lá na frente!
Em mendicância andar? Nada há pior
Que um homem se arrastar como indigente,
Ao léu seu pai e a mãe jogada às ruas,
Filhos e esposa a receber desdéns,
De todos a quem peçam de mãos nuas.
Ofende o peito, enluta a raça quem
Suporta o riso alheio e escarninho.
Se mal andamos nós sem um vintém,
E sem que um sonho bom nos encaminhe,
Morramos pela pátria, nosso bem,
Que é vil à vida assim ter um carinho.
(Traduções: Antônio Medina Rodrigues)
sexta-feira, setembro 14, 2007
Alceu 346 LP
Fúria destes ventos me entorpece:
Ou se engalfinham ondas pela proa,
Ou pelo lado a onda me aborrece,
Em negra embarcação vamos a toa,
E na tormenta o ardor então falece.
Já encobre o mastro agora um aguaceiro,
E a vela vai dançando pelo vento,
Esfarrapada, à força do salseiro,
E agora(é o fim!)cedeu o amarramento.
Tradução: Antônio Medina Rodrigues.
Ou se engalfinham ondas pela proa,
Ou pelo lado a onda me aborrece,
Em negra embarcação vamos a toa,
E na tormenta o ardor então falece.
Já encobre o mastro agora um aguaceiro,
E a vela vai dançando pelo vento,
Esfarrapada, à força do salseiro,
E agora(é o fim!)cedeu o amarramento.
Tradução: Antônio Medina Rodrigues.
quarta-feira, setembro 12, 2007
A uma passante - Baudelaire
La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d’une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet ;
Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douleur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un éclair...puis la nuit! – Fugitive beauté
Dont le regard m’a fait soudainement rena�tre,
Ne te verrai-je plus que dans l’eternité?
Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!
A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;
Perna de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu de seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.
Brilho...e a noite depois! - Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!
(Tradução: Guilherme de Almeida)
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d’une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet ;
Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douleur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un éclair...puis la nuit! – Fugitive beauté
Dont le regard m’a fait soudainement rena�tre,
Ne te verrai-je plus que dans l’eternité?
Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!
A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;
Perna de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu de seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.
Brilho...e a noite depois! - Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!
(Tradução: Guilherme de Almeida)
Vida dos filósofos - Heráclito
Diógenes Laércio IX, I [DK 22,1]
Heráclito, filho de Blosón (ou, conforme dizem alguns, Herakon) de Éfeso. Este homem floresceu por ocasião da sexagésima nona olimpíada. Ele era extraordinarimente arrogante e desdenhoso, como de fato se depreende claramente de seu livro, onde ele afirma "Muita erudição não confere bom senso - de outra forma, o teria conferido a Hesíodo e Pitágoras, bem como a Xenófanes e Hecateu". (...) Por fim, tornou-se um misantropo, abandonando a cidade para viver nas montanhas, onde alimentava-se de plantas e ervas. Porém, em conta disso, contraiu hidropisia e regressou à cidade. Perguntou aos médidos, à maneira de um enigma, se conseguiriam transformar uma copiosa tempestade em seca. Como estes não o compreendessem, enterrou-se em um estábulo, na esperança que a hidropisia fosse evaporada pelo calor do estrume. Porém mesmo assim não logrou êxito, e morreu aos sessenta anos.
Comentários:
A informação de que Heráclito viveu seu apogeu aos quarenta anos, à época da sexuagésima nona olimpíada, foi, sem sombra de dúvidas, extraída do historiógrafo Apolodoro: A meia-idade de Heráclito é situada aproximadamente quarenta anos após Anaxímenes ter alcançado o seu apogeu e a partida de Xenófanes de Cólofon. (Confome afirma Sócion [Diog. L. IX, 5, DK22 AI) algumas pessoas diziam que Heráclito ouviu os ensinamentos de Xenófanes. Supor que havia alguma influência provavelmente seria o bastante, mas o tom crítico do fr.40, citado acima, não sugere uma relação formal entre mestre e discípulo). Não há motivo para suspeitar da datação de Apolodoro, visto que Heráclito mencionou Pitágoras e Hecateu assim como Xenófanes, e foi, talvez, aludido indiretamente por Parmênides. Tentativas de situar a atividade filosófica de Heráclito posteriormente à datação de Apolodoro foram sabiamente propostas após 478 A.C ( e ainda, mais improvável, em consequência de Parmênides) contudo, não tiveram aceitação e sustentam-se em hipóteses implausíveis, tais quais que a ausência de um governo autonômo (Sugerida pela afirmação do fr.121, de que os efésios exilaram Hermodoro, amigo de Heráclito) seria possível em éfeso antes de sua liberação pela Pérsia, em 478. Heráclito pode ter vivido mais do que os sessenta anos de Apolodoro (na mesma idade em que também teriam morrido Anaxímenes e Empédocles, conforme afirma Aristóteles); Todavia, nós podemos provisoriamente aceitar que ele estava em sua meia-idade no fim do sexto século e que sua grande atividade filosófica encerrou-se por volta de 480.
O resto do fr.40 é citado como exemplo do tipo de ficção biográfica que proliferou-se em volta do nome de Heráclito. Diógenes também nos conta que Heráclito recusou-se a criar leis para os Efésios, preferindo brincar com crianças no templo de Àrtemis. Grande parte destas histórias são baseadas em ditos notórios de Heráclito; muitas tencionavam ridicularizá-lo e foram criados com propósitos mal-intencionados por helênicos ofendidos por seu tom superior. Por exemplo, sua misantropia deduz-se por suas críticas à maioria dos homens , o vegetarianismo por menção à uma contaminação do sangue, e a hidropisia por sua asserção "É a morte para as almas tornar-se água". Ele era conhecido por propor enigmas obscuros, o que teria lhe custado a vida: Os médicos, a quem ele aparentemente critica no fragmento 58, nada fazem para salvá-lo; É dito que enterrou-se no estrume porque dissera no fr.96 que "os cadáveres são mais desprezíveis que estrume". "Ser exalado" refere-se a sua teoria das exalações do mar. Os únicos detalhes a respeito da vida de Heráclito que podem seguramente ser aceitos como verdadeiros são de que ele passou-a em Éfeso, que veio de uma antiga família aristocrática, e que estava em maus termos com seus conterrâneos.
Heráclito, filho de Blosón (ou, conforme dizem alguns, Herakon) de Éfeso. Este homem floresceu por ocasião da sexagésima nona olimpíada. Ele era extraordinarimente arrogante e desdenhoso, como de fato se depreende claramente de seu livro, onde ele afirma "Muita erudição não confere bom senso - de outra forma, o teria conferido a Hesíodo e Pitágoras, bem como a Xenófanes e Hecateu". (...) Por fim, tornou-se um misantropo, abandonando a cidade para viver nas montanhas, onde alimentava-se de plantas e ervas. Porém, em conta disso, contraiu hidropisia e regressou à cidade. Perguntou aos médidos, à maneira de um enigma, se conseguiriam transformar uma copiosa tempestade em seca. Como estes não o compreendessem, enterrou-se em um estábulo, na esperança que a hidropisia fosse evaporada pelo calor do estrume. Porém mesmo assim não logrou êxito, e morreu aos sessenta anos.
Comentários:
A informação de que Heráclito viveu seu apogeu aos quarenta anos, à época da sexuagésima nona olimpíada, foi, sem sombra de dúvidas, extraída do historiógrafo Apolodoro: A meia-idade de Heráclito é situada aproximadamente quarenta anos após Anaxímenes ter alcançado o seu apogeu e a partida de Xenófanes de Cólofon. (Confome afirma Sócion [Diog. L. IX, 5, DK22 AI) algumas pessoas diziam que Heráclito ouviu os ensinamentos de Xenófanes. Supor que havia alguma influência provavelmente seria o bastante, mas o tom crítico do fr.40, citado acima, não sugere uma relação formal entre mestre e discípulo). Não há motivo para suspeitar da datação de Apolodoro, visto que Heráclito mencionou Pitágoras e Hecateu assim como Xenófanes, e foi, talvez, aludido indiretamente por Parmênides. Tentativas de situar a atividade filosófica de Heráclito posteriormente à datação de Apolodoro foram sabiamente propostas após 478 A.C ( e ainda, mais improvável, em consequência de Parmênides) contudo, não tiveram aceitação e sustentam-se em hipóteses implausíveis, tais quais que a ausência de um governo autonômo (Sugerida pela afirmação do fr.121, de que os efésios exilaram Hermodoro, amigo de Heráclito) seria possível em éfeso antes de sua liberação pela Pérsia, em 478. Heráclito pode ter vivido mais do que os sessenta anos de Apolodoro (na mesma idade em que também teriam morrido Anaxímenes e Empédocles, conforme afirma Aristóteles); Todavia, nós podemos provisoriamente aceitar que ele estava em sua meia-idade no fim do sexto século e que sua grande atividade filosófica encerrou-se por volta de 480.
O resto do fr.40 é citado como exemplo do tipo de ficção biográfica que proliferou-se em volta do nome de Heráclito. Diógenes também nos conta que Heráclito recusou-se a criar leis para os Efésios, preferindo brincar com crianças no templo de Àrtemis. Grande parte destas histórias são baseadas em ditos notórios de Heráclito; muitas tencionavam ridicularizá-lo e foram criados com propósitos mal-intencionados por helênicos ofendidos por seu tom superior. Por exemplo, sua misantropia deduz-se por suas críticas à maioria dos homens , o vegetarianismo por menção à uma contaminação do sangue, e a hidropisia por sua asserção "É a morte para as almas tornar-se água". Ele era conhecido por propor enigmas obscuros, o que teria lhe custado a vida: Os médicos, a quem ele aparentemente critica no fragmento 58, nada fazem para salvá-lo; É dito que enterrou-se no estrume porque dissera no fr.96 que "os cadáveres são mais desprezíveis que estrume". "Ser exalado" refere-se a sua teoria das exalações do mar. Os únicos detalhes a respeito da vida de Heráclito que podem seguramente ser aceitos como verdadeiros são de que ele passou-a em Éfeso, que veio de uma antiga família aristocrática, e que estava em maus termos com seus conterrâneos.
As litanias de Satã - Baudelaire
O toi, le plus savant et le plus beau des Anges,
Dieu trahi par le sort et privé de louanges,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Ó Prince e l'exil, à qui l'0n o fait tort,
Et qui, vaincu, toujouurs te redresses plus fort,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi, qui sais tout, grand roi des choses souterranies,
Guérisseur familier des angoises humaines,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi qui, même aux léprex, aux paria maudits,
Enseignes par l'amour le goût du Paradis,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
O toi, qui de la mort, ta vieille et fort amant,
Engendras l'Espérance - une folle charmante!
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi, qui fais au proscrit ce regard calme et haut
Qui damne tout un peuple autour d'un échafaud,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi, qui sais en quel coin des terres envieuses
Le Dieu jaloux cacha les pierres précieuses,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi dont l'ceil clair connaît les profonds arsenaux
Où dort enseveli le peuple des métaux,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi dont la large main cache les précipices
Au sonambule errant au bord des édifices,
O satan prends pitié de ma longue misère!
Toi qui, magiquemente, assouplis les vieux os
De l'ivrogne attardé foulé par les chevaux,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi qui, pour consoler l' homme frêle qui soufre,
Nous appris à mêler le salpêtre et le soufre,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi qui poses ta marque, ô complice subtil,
sur le front du Crésus impitoyable et vil,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi qui mets dans les yeux et dans le coeur des filles
Le cult de la plaie et l'amour des guenilles,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Bâton des exilés, lampe des inventeurs,
Confesseur des pendus et des conspirateurs,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Père adoptif de ceux qu'en sa noire colère
Du paradis terrestre a chassés Dieu le Père,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
PRIÈRE
Glorie et louange à toi, Satan, dans les hauters
Du Ciel, où tu régnas, et dans les profounders
de l'Enfer, où, vaincu, tu rêves en silence!
Fais que mon âme, um jour, sous l'arbre de Science,
Près de toi se repose, à l'heure où sur ton front,
Comme un temple nouveau ses rameaux s'epandront!
Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto,
Deus que a sorte traiu e privou do seu culto,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Ó Príncipe do exílio a quem alguém fez mal,
E que, vencido, sempre te ergues mais brutal
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu que vês tudo, ó rei das coisas subterrâneas,
Charlatão familiar das humanas insânias
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu, que mesmo ao leproso, ao pária infame, ao réu,
Ensinas pelo amor as delícias do Céu,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu, que da morte, tua velha e forte amante,
Engendraste a Esperança, - A louca fascinante!
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu, que dás ao proscrito esse alto e calmo olhar,
Que faz ao pé da forca o povo desvairar,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu que sabes onde é que em terras invejosas
o Deus ciumento esconde as pedras preciosas,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu cujo claro olhar conhece os arsenais
Onde dorme sepulto o povo dos metais,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu cuja larga mão oculta os precipícios
Ao sonâmbulo a errar na orla dos edifícios,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu que, magicamente, abrandas como mel
Os velhos ossos do ébrio moído num tropel,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu, que ao homem que é fraco e sofre deste o alvitre
De poder misturar ao enxofre o salitre,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu, que pões tua marca, ó cúmplice sutil,
Sobre a fronte do Creso implacável e vil,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu, que abrindo a alma e o olhar das raparigas, a ambos
Dás o culto da chaga e o amor pelos molambos,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Do exilado bordão, lanterna do inventor,
Confessor do enforcado e do conspirador,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Pai adotivo que és dos que, furioso, o Mestre,
o Deus Padre, expulsou do paraíso terrestre,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
ORAÇÃO
Glória e louvor a ti, Satã, nas amplidões
Do Céu, em que reinaste, e nas escuridões
do Inferno, em que, vencido, sonhas com prudência!
Deixa que eu, junto a ti, sob a Árvore da Ciência,
Repouse, na hora em que, sobre a fronte, hás de ver
Seus ramos como um templo novo a se estender!
Tradução: Guilherme de Almeida.
Dieu trahi par le sort et privé de louanges,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Ó Prince e l'exil, à qui l'0n o fait tort,
Et qui, vaincu, toujouurs te redresses plus fort,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi, qui sais tout, grand roi des choses souterranies,
Guérisseur familier des angoises humaines,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi qui, même aux léprex, aux paria maudits,
Enseignes par l'amour le goût du Paradis,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
O toi, qui de la mort, ta vieille et fort amant,
Engendras l'Espérance - une folle charmante!
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi, qui fais au proscrit ce regard calme et haut
Qui damne tout un peuple autour d'un échafaud,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi, qui sais en quel coin des terres envieuses
Le Dieu jaloux cacha les pierres précieuses,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi dont l'ceil clair connaît les profonds arsenaux
Où dort enseveli le peuple des métaux,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi dont la large main cache les précipices
Au sonambule errant au bord des édifices,
O satan prends pitié de ma longue misère!
Toi qui, magiquemente, assouplis les vieux os
De l'ivrogne attardé foulé par les chevaux,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi qui, pour consoler l' homme frêle qui soufre,
Nous appris à mêler le salpêtre et le soufre,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi qui poses ta marque, ô complice subtil,
sur le front du Crésus impitoyable et vil,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Toi qui mets dans les yeux et dans le coeur des filles
Le cult de la plaie et l'amour des guenilles,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Bâton des exilés, lampe des inventeurs,
Confesseur des pendus et des conspirateurs,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
Père adoptif de ceux qu'en sa noire colère
Du paradis terrestre a chassés Dieu le Père,
O Satan prends pitié de ma longue misère!
PRIÈRE
Glorie et louange à toi, Satan, dans les hauters
Du Ciel, où tu régnas, et dans les profounders
de l'Enfer, où, vaincu, tu rêves en silence!
Fais que mon âme, um jour, sous l'arbre de Science,
Près de toi se repose, à l'heure où sur ton front,
Comme un temple nouveau ses rameaux s'epandront!
Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto,
Deus que a sorte traiu e privou do seu culto,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Ó Príncipe do exílio a quem alguém fez mal,
E que, vencido, sempre te ergues mais brutal
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu que vês tudo, ó rei das coisas subterrâneas,
Charlatão familiar das humanas insânias
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu, que mesmo ao leproso, ao pária infame, ao réu,
Ensinas pelo amor as delícias do Céu,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu, que da morte, tua velha e forte amante,
Engendraste a Esperança, - A louca fascinante!
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu, que dás ao proscrito esse alto e calmo olhar,
Que faz ao pé da forca o povo desvairar,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu que sabes onde é que em terras invejosas
o Deus ciumento esconde as pedras preciosas,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu cujo claro olhar conhece os arsenais
Onde dorme sepulto o povo dos metais,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu cuja larga mão oculta os precipícios
Ao sonâmbulo a errar na orla dos edifícios,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu que, magicamente, abrandas como mel
Os velhos ossos do ébrio moído num tropel,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu, que ao homem que é fraco e sofre deste o alvitre
De poder misturar ao enxofre o salitre,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu, que pões tua marca, ó cúmplice sutil,
Sobre a fronte do Creso implacável e vil,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu, que abrindo a alma e o olhar das raparigas, a ambos
Dás o culto da chaga e o amor pelos molambos,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Do exilado bordão, lanterna do inventor,
Confessor do enforcado e do conspirador,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Pai adotivo que és dos que, furioso, o Mestre,
o Deus Padre, expulsou do paraíso terrestre,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
ORAÇÃO
Glória e louvor a ti, Satã, nas amplidões
Do Céu, em que reinaste, e nas escuridões
do Inferno, em que, vencido, sonhas com prudência!
Deixa que eu, junto a ti, sob a Árvore da Ciência,
Repouse, na hora em que, sobre a fronte, hás de ver
Seus ramos como um templo novo a se estender!
Tradução: Guilherme de Almeida.
A Beleza - Baudelaire
Je suis belle, ô mortels! comme um rêve de pierre,
Et mon sein, où chacun s'est meurtri tour à tour
Est fait pour inspirer au poète un amour
Éternel et muet ainsi que la matière.
Je trône dans l'azur comme um sphinx imcompris;
J'unis un coeur de neige à la blancheur des cygnes;
Je hais le mouvement qui déplace les lignes,
Et jamais je ne pleure et jamais je ne ris.
Les poètes, devant mes grandes attitudes,
Que j'ai l'air d'emprunter aux plus fiers monuments,
Consumeront leur jour en d'austeres études.
Car j'au, pour fasciner ces dociles amants,
Des pur miroirs qui font toutes choses plus belles:
Mes yeux, mes larges yeux aux clartés éternelles!
Sou mais bela, ó mortais! que um sonho de granito,
E meu seio, onde vem cada um gemer de dor,
Foi feito para ao poeta inpirar um amor
Semelhante à matéria, isto é, mudo e infinito.
Reino no azul como uma esfinge singular;
Meu coração é neve e ao mesmo tempo arminho;
Odeio o que se move e faz o desalinho,
E não sei o que é rir, nem sei o que é chorar.
Os poetas, ante as minhas grandes atitudes,
Que aos monumentos mais altivos emprestei,
Consumirão o ser nos estudos mais rudes;
Pois para esses servis amantes reservei
Um puro espelho em que é mais bela a realidade:
Meu olhar, largo olhar de eterna claridade!
(Tradução: Guilherme de Almeida)
Et mon sein, où chacun s'est meurtri tour à tour
Est fait pour inspirer au poète un amour
Éternel et muet ainsi que la matière.
Je trône dans l'azur comme um sphinx imcompris;
J'unis un coeur de neige à la blancheur des cygnes;
Je hais le mouvement qui déplace les lignes,
Et jamais je ne pleure et jamais je ne ris.
Les poètes, devant mes grandes attitudes,
Que j'ai l'air d'emprunter aux plus fiers monuments,
Consumeront leur jour en d'austeres études.
Car j'au, pour fasciner ces dociles amants,
Des pur miroirs qui font toutes choses plus belles:
Mes yeux, mes larges yeux aux clartés éternelles!
Sou mais bela, ó mortais! que um sonho de granito,
E meu seio, onde vem cada um gemer de dor,
Foi feito para ao poeta inpirar um amor
Semelhante à matéria, isto é, mudo e infinito.
Reino no azul como uma esfinge singular;
Meu coração é neve e ao mesmo tempo arminho;
Odeio o que se move e faz o desalinho,
E não sei o que é rir, nem sei o que é chorar.
Os poetas, ante as minhas grandes atitudes,
Que aos monumentos mais altivos emprestei,
Consumirão o ser nos estudos mais rudes;
Pois para esses servis amantes reservei
Um puro espelho em que é mais bela a realidade:
Meu olhar, largo olhar de eterna claridade!
(Tradução: Guilherme de Almeida)
segunda-feira, setembro 10, 2007
Safo Fr.34
Em torno a silene esplêndida
os astros
recolhem sua forma lúcida
quando plena ela mais resplende
alta
argêntea
[Fr.34 LP]
Tradução: Haroldo de Campos
os astros
recolhem sua forma lúcida
quando plena ela mais resplende
alta
argêntea
[Fr.34 LP]
Tradução: Haroldo de Campos
Alceu
Bebamos! Por que a noite e as tochas aguardamos?
Estala, é um polegar tão breve o dia!
Pega, meu belo, as coloridas, grandes taças
Pois que o filho de Sêmele e Zeus
O vinho vela-mágoa para os homens deu.
Mistura e versa um terço de água em dois de vinho,
E jorra ao copa até que a espuma ensope a borda,
E quando um copo seca, o próximo transborde.
(Fr.346 Lobel-Page)
Tradução: Antônio Medina Rodrigues.
Estala, é um polegar tão breve o dia!
Pega, meu belo, as coloridas, grandes taças
Pois que o filho de Sêmele e Zeus
O vinho vela-mágoa para os homens deu.
Mistura e versa um terço de água em dois de vinho,
E jorra ao copa até que a espuma ensope a borda,
E quando um copo seca, o próximo transborde.
(Fr.346 Lobel-Page)
Tradução: Antônio Medina Rodrigues.
Anacreonte
Fr. 1D
Dos cervos caçadora, ó loura Ártemis,
Filha és de Zeus, e imperatriz das feras.
Nas praias do Leiteio sempre velas
A cidade feroz dos baluartes:
Pois deusa nunca foste de homens rudes.
Fr. 2D
Tu brincas com Eros, ó implacável
Déspota, e as ninfas tu animas,
De azul pupila, e rubros elos
De Afrodite. Ambulas, entretanto,
em píncaros de sombra, em montes
De lá, que escutes meu chamado:
De Cleóbulo, ó Dioniso,
Ah faz com que ele seja meu amado.
Fr.4D
Eu te procuro, e não me escutas,
Menino de castas pupilas.
Nas mãos as rédeas levas de minha alma.
Fr.96D
Tu, após me espionares
De olho vesgo, assim me foges,
Ó potrinha ágil da Trácia?
Crês velhusca a minha arte?
Olha, o freio vou lançar-te,
Dou-te rédeas e acicate,
O trote eu te dobro, e caminhas.
Ninguém conseguiu domar-te?
Tu só viste mariquinhas.
Fr.13 Page
Com rubra bola (é sina) o loiro
Eros de ouro me ataca, e malha:
Hei de brincar com a menina
Que tem pinturas na sandália.
Ela é de Lesbos, centro sábio,
E a púbis, quando lhe escancaro
Ela espezinha; ao certo, os lábios
A um rapazinho ela abre avara.
(Traduções: Antônio Medina Rodrigues)
Dos cervos caçadora, ó loura Ártemis,
Filha és de Zeus, e imperatriz das feras.
Nas praias do Leiteio sempre velas
A cidade feroz dos baluartes:
Pois deusa nunca foste de homens rudes.
Fr. 2D
Tu brincas com Eros, ó implacável
Déspota, e as ninfas tu animas,
De azul pupila, e rubros elos
De Afrodite. Ambulas, entretanto,
em píncaros de sombra, em montes
De lá, que escutes meu chamado:
De Cleóbulo, ó Dioniso,
Ah faz com que ele seja meu amado.
Fr.4D
Eu te procuro, e não me escutas,
Menino de castas pupilas.
Nas mãos as rédeas levas de minha alma.
Fr.96D
Tu, após me espionares
De olho vesgo, assim me foges,
Ó potrinha ágil da Trácia?
Crês velhusca a minha arte?
Olha, o freio vou lançar-te,
Dou-te rédeas e acicate,
O trote eu te dobro, e caminhas.
Ninguém conseguiu domar-te?
Tu só viste mariquinhas.
Fr.13 Page
Com rubra bola (é sina) o loiro
Eros de ouro me ataca, e malha:
Hei de brincar com a menina
Que tem pinturas na sandália.
Ela é de Lesbos, centro sábio,
E a púbis, quando lhe escancaro
Ela espezinha; ao certo, os lábios
A um rapazinho ela abre avara.
(Traduções: Antônio Medina Rodrigues)
domingo, setembro 09, 2007
Álvares de Azevedo
Namoro a cavalo
Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.
Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
A minha namorada na janela...
Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito. . . mas furtado.
Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento. . .
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a comédia - em casamento.
Ontem tinha chovido. . . que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama...
Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada. . .
Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...
O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada. ..
Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.
Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!
Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.
Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
A minha namorada na janela...
Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito. . . mas furtado.
Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento. . .
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a comédia - em casamento.
Ontem tinha chovido. . . que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama...
Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada. . .
Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...
O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada. ..
Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.
Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!
Resíduo
De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
Camões - Soneto
Coitado! Que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
De uma cousa confio e desconfio.
Avôo sem asas; estou cego e guio;
E no que valho mais menos mereço
Calo e dou vozes, falo e emudeço,
Nada me contradiz, e eu aporfio.
Qu’ria se ser pudesse, o impossível;
Qu’ria poder mudar-me, e estar quedo;
Usar de liberdade, e ser cativo;
Qu’ria que visto fosse, e invisível;
Qu’ria desenredar-me e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo!
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
De uma cousa confio e desconfio.
Avôo sem asas; estou cego e guio;
E no que valho mais menos mereço
Calo e dou vozes, falo e emudeço,
Nada me contradiz, e eu aporfio.
Qu’ria se ser pudesse, o impossível;
Qu’ria poder mudar-me, e estar quedo;
Usar de liberdade, e ser cativo;
Qu’ria que visto fosse, e invisível;
Qu’ria desenredar-me e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo!
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