domingo, abril 17, 2011

Ilíada, XXI, 73-110 - Aquiles e Licáon

Então Licáon com uma mão tocou-lhe os joelhos em súplica,
enquanto com a outra agarrava a lança afiada e não a largava.
E falando-lhe proferiu palavras apetrechadas de asas:

"Peço-te pelos teus joelhos, ó Aquiles. Respeita-me e tem pena
de mim. Perante ti, ó tu criado por Zeus, sou suplicante venerando.
Pois foi à tua mesa que primeiro comi o cereal de Deméter,
no dia em que me tomaste no bem cuidado pomar;
depois levaste-me para longe do meu pai e dos meus amigos,
para a sacra Lemnos; lá te fiz lucrar o preço de cem bois.
Agora ganhei a liberdade por ter pago três vezes o meu preço;
e esta é a minha décima segunda aurora, desque que regressei
a Ílion depois de tudo que sofri. Agora de novo nas tuas mãos
me pôs o fado malévolo. Sou decerto detestado por Zeus pai,
que me dá novamente a ti. Para uma vida curta me deu à luz
minha mãe, Laótoa, filha de Altes, o ancião -
Altes, que é rei dos belicosos Léleges,
senhor do íngreme Pédaso no Satnioente.
Príamo desposou sua filha, assim como muitas outras;
mas dele nós dois nascemos, e tu matar-nos-ás aos dois.
Ao outro tu mataste entre os peões dianteiros,
ao divino Polidoro, com uma estocada da tua lança.
Agora ao meu encontro virá a morte. Pois não creio
que escaparei às tuas mãos, visto que nelas me pôs um deus.
Mas outra coisa te direi e tu guarda-a no teu espírito:
não me mates, pois não nasci do útero donde nasceu Heitor
que matou o teu companheiro, tão bondoso e valente.

Assim lhe falou o glorioso filho de Príamo com palavras
de súplica; mas não foi voz branda que ouviu em resposta:

"Tolo! Não me ofereças resgates nem regateies comigo.
Antes de a Pátroclo ter sobrevindo o dia do seu destino,
sempre me era mais agradável ao espírito poupar
os Troianos; e muitos levei eu vivos para vender noutro lado.
Mas agora nem um fugirá à morte, de todos os que o deus
me lançar nas mãos à frente das muralhas de Ílion:
nem um dentre todos os Troianos, muito menos os filhos de Príamo.
Não, querido amigo: morre tu também. Por que choras para nada?
E não olhas para mim e não vês como sou alto e belo?
Homem nobre é meu pai e deusa é a mãe que me gerou.
Mas também para mim virá a morte e o fado inelutável.
Chegará a aurora, a tarde ou então o meio-dia
em que em combate alguém me privará da vida,
quer atirando a lança ou disparando uma flecha."

Tradução de Frederico Lourenço

Ausônio - Epigrama 1: "Sobre os seus poemas"

Há o que ler de manhã, e também de tarde; a coisas alegres
misturei sérias, para que agradem no devido tempo.
A vida não tem uma cor só, nem o poema um só
leitor; cada página tem o seu momento.
Vênus, de mitra, aprova isto: Minerva, de capacete, aquilo.
Um estóico aprecia estre trecho; um epicurista, aqueloutro.
Contanto que eu observe a norma da moral antiga,
poderá minha sóbria Musa aplaudir gracejos permitidos.

Tradução de João Pedro Mendes

In: NOVAK,Maria da Glória & NERI, Maria Luiza (org.) Poesia Lírica Latina. São Paulo: Martins Fontes, 2003
Não quero, Cloe, teu amor, que oprime
Porque me exige amor. Quero ser livre.

A sperança é um dever do sentimento.

1-11-1930

Ricardo Reis
Nunca a alheia vontade, inda que grata,
Cumpras por própria. Manda no que fazes,
Nem de ti mesmo servo.
Ninguém te dá quem és. Nada te mude.
Teu íntimo destino involuntário
Cumpre alto. Sê teu filho.

19-11-1930

Ricardo Reis
Do que quero renego, se o querê-lo
Me pesa na vontade. Nada que haja
Vale que lhe concedamos
Uma atenção que doa.
Meu balde exponho à chuva, por ter água.
Minha vontade, assim, ao mundo exponho,
Recebo o que me é dado,
E o que falta não quero

14-3-1931
Ricardo Reis
Flores amo, não busco. Se aparecem
Me agrado ledo, que buscar prazeres
Tem o esforço da busca.
A vida seja como o sol, que é dado,
Nem arranquemos flores, que, tiradas,
Não são nossas, mas mortas.

16-6-1932

Ricardo Reis
Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingires.
Nada speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é tudo.
Tens sol se há sol, ramos se ramos busca,
Sorte se a sorte é dada.

Ricardo Reis
Como este infante que alourado dorme
Fui. Hoje sei que há morte,
Lídia, há largas taças por encher
Nosso amor que nos tarda.
Qualquer que seja o amor ou a taça, cedo
Cessa. Receia, e apressa.

Ricardo Reis

sábado, abril 16, 2011

Quero, Neera, que os teus lábios laves
Na piscina tranquila
Para que contra a tua febre e a triste
Dor que pões em viver,
Sintas a fresca e calma natureza
Da água, e reconheças
Que não têm penas nem desassossegos
As ninfas das nascentes
Nem mais soluços do que o som da água
Alegre e natural.
As nossas dores, não, Neera, vêm
Das causas naturais
Datam da alma e do infeliz fruir
Da vida com os homens.
Aprende pois, ó aprendiza jovem
Das clássicas delícias,
A não pôr mais tristeza que um sorriso
No modo como vives.
Nasceste pálida, deitando a água
Da tua vã beleza
Sobre a estólida fé das nossas mãos
Medrosas de ter gozo
Demasiado preso à desconfiança
Que vem de teu saber,
Não para essa vã mnemónica
Do futuro fatal.
Façamos vívidas grinaldas várias
De sol, flores e risos
Para ocultar o fundo fiel à Noite
Dos nossos pensamentos
Curvado já em vida sob a ideia
Do plutónico jugo
Cônscias já da lívida esperança
Do caos redivivo.

R.Reis

sexta-feira, abril 15, 2011

Trabalhos e Dias 1-10 [Hino a Zeus]

Musas da Piéria, por canções glorificando,
Vinde, falai de Zeus o vosso pai hineando.
Por ele, os mortais são notos ou ignotos,
famosos ou infames, por querer de Zeus grande.
Fácil ele faz forte, fácil o forte ele enfraquece,
Facilmente o amplo amaina e o inviso acresce;
Facilmente, aplaina o torto, o altivo esvaece
Zeus que no alto freme e habita a sublime sede.
Atende-me, porque vês e ouves; apruma as sentenças,
Tu! E eu, a Perses verdades gostaria de enunciar.

[Tradução: Rafael Brunhara]

quarta-feira, abril 13, 2011

O mar jaz; gemem em segredo os ventos
Em Eolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
Águas franze Neptuno
E a praia é alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
Ou com razão nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indício
Três ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
Ecoa de Saturno?

Ricardo Reis

sábado, abril 09, 2011

Ilíada, 5, 711-868: Diomedes fere Ares

(...)
Mas Hera, braços-brancos, viu como os Aqueus
na luta cruel estavam sendo trucidados.
A Atena então profere palavras aladas:
"Filha de Zeus que porta-o-escudo, ó Infatigável!
Será vã a promessa feita a Menelau
por nós, de que, destruída Tróia bem-murada,
retornaria aos seus, se nós deixarmos Ares
enfurecer funesto. Lembremo-nos, ambas,
de nosso ímpeto bélico. Avante". Falou.
Não dissentiu a olhicerúlea, enquanto
Hera, augusta Croníade, os seus cavalos de áureo
frontal ia aprestando. Hebe ao carro adapta
rodas de bronze curvo eixo férreo, oito raios;
pinas de ouro maciço, lâminas de bronze
justas nas órbitas externas: maravilha!,
Em fina prata os cubos de rodas, girando,
de ambos os lados. Tiras feitas de ouro e prata
formam tensas o corpo do carro de dúplice
parapeito; dali sai o timão prateado,
à cuja ponta firma-se um jugo belíssimo
de ouro e peitorais aurilindos; sob o jugo
Hera os corcéis conduz, com gritos de combate.
Atena, por seu turno, filha de Zeus porta-
-escudo, deixa cair sobre o piso paterno
o peplo de polícromo bordado, urdido
por suas próprias mãos. Veste o arnês de Zeus, ajunta-
-nuvens, e cinge as armas para a lacrimosa
guerra. Põe nas espáduas a égide franjada,
pavorosa, que ostenta em coroa o Terror,
Fobos; Éris, Discórdia; Alké, Violência; Ioké,
glacial Perseguição; e a cabeça gorgônea,
monstruosa, obra de Zeus, espavento e prodígio.
A deusa coloca o elmo de cimeira dupla,
tetracórnio, dourado, com friso de heróis
de cem cidades. Sobe então ao carro flâmeo
e empunha a megalança, pesada, maciça,
com a qual, quando irada, a filha do fortíssimo
Pai dizima esquadrões de guerreiros, de heróis.
Hera fustigou rápida os corcéis. As portas
celestes por si mesmas rangeram, guardadas
pelas Horas, custódias do amplo céu urânio,
que abrem e fecham nuvens densas. Os corcéis,
picados, saem por elas. Longe dos demais
numes, Zeus, no mais alto píncaro do Olimpo
multiescarpado, senta-se. Hera, a dos  braços-
-brancos, sofreia então so cavalos, dizendo:
"Pai, não te indignas vendo os torpes feitos de Ares,
que às cegas, em desordem, extermina os Gregos?
Eu sofro, enquanto a Cípria e o arquiargênteo Apolo
gzam com os demandos do demente infrene
que atiçaram. Tua cólera despertarei,
Zeus Pai, se eu castigar Ares com o rigor
devido e o afastar do campo de batalha?"
Volta-se e lhe responde Zeus ajunta-nuvens:
"Mais valerá que incites de encontro a ele Atena
predadora; ninguém melhor para puní-lo".
Disse. E assentiu a deusa braços-brancos, Hera.
Fustigou os corcéis que de bom grado voam
entre a terra e o estelário. Quanto abarca a vista,
a perder-se na bruma, de quem, de um mirante,
contempla o oceano roxo, cor-de-vinho, tanto
os cavalos das deusas num arranco avançam,
altíssonos, nitrindo. Quando aos tróicos plainos
chegaram, ao ponto aonde confluem as correntes
dos dois rios, Escamandro e Simoente, Hera, braços-
-brancos, parou o carro, soltou os cavalos
e em torno espargiu densa névoa. Do Simoente
jorrou para os cavalos pasto ambrosíaco. Elas,
as deusas, seguem, pombas tímidas no andar,
sequiosas de ajudar os Gregos. Aonde mais
- e mais forte - o combate se adensa, as duas divas
acorrem. Em redor de Diomedes, o doma-
-corcéis, se apinha a chusma - leões carnivorazes
ou javalis fortíssimos. Hera, estacando,
emite um berro, símile no vulto a Estêntor,
animoso, voz bronzirreboante, só igual
ao clamor de cinqüenta: "Que vergonha, Aqueus,
só no aspecto notáveis! Presente à refrega
o divo Aquiles, Tróico nenhum aos dardânios
portais jamais surgiu, temendo-lhe o arremesso.
Agora, é vê-los. Lutam juntos às naves côncavas!"
Disse. E pôs-se a incitar o ânimo grego e a fúria.
Atena, olhos-azuis, busca o Tideide. O príncipe,
junto aos corcéis e ao carro, amainava a ferida
que Pândaro, flecheiro, lhe fizera. O suor,
por so o largo bálteo do broquel redondo,
o afligia. Exaurido, o braço já lhe pesa;
mas afasta a correia e limpa o sangue negro-
-nuvioso. A deusa o jugo os corcéis lhe toma,
dizendo-lhe: "Ó Tideide, ao pai não se assemelha.
De pequena estatura, Tideu era um bravo.
Certa vez o proibi de lutar, de ostentar
seu brilho. Como núncio, apartado dos Gregos,
fora a Tebas, perante Cadmeios sem conta;
impus-lhe banquetear-se nos salões tranqüilo.
Mas ele, de coração fogoso, com sempre,
pôs-se a reptar os jovens cádmios e os bateu
nos vários jogos (facilmente: eu ao seu lado).
Eu, agora, te amparo e guardo e, toda zelos,
te instigo a combater os Troianos. Opresso
de fadiga ou de frio temor descorajoso,
tu não pareces filho de Tideu, flamante-
-coração, da linhagem ilustre de Eneu."
O intrépido Diomedes volta-se e responde:
"Reconheço-te, deusa, filha de Zeus, porta-
-escudo. De boa mente falo, nada oculto.
Descoragem medrosa ou tibieza não travam
meu ímpeto.Recordo apenas teu ditame:
não afrontar jamais deuses no combate;
issso ensinaste a mim e aos outros; Afrodite,
somente, poderia eu ferir com meu bronze.
Eis porque retirei-me e concitei os meus
a reunir-se aqui, junto de mim, pois notei
Ares, em meio aos Tróicos, senhoreando a guerra".
Então, olhos-azuis, a deusa Atena diz-lhe:
Ó Diomedes Tideide, meu dileto no íntimo:
não te arreceies de Ares nem de qualquer outro
imortal. Estarei ao teu lado, incitando-te.
Lança os cavalos unicascos de encontro a Ares,
acomete-o de perto, sem temer-lhe a fúria:
é um insano de má-morte, um falso, um duas caras:
a Hera e a mim, não há muito, se declarou
inimigo dos Tróicos e a favor dos Gregos.
Agora, deslembrado, junta-se aos Troianos".
Assim falando, a deusa afasta o auriga Estênelo
do carro com a mão (este salta, obediente)
e sobe à biga ao lado do árdego Diomedes.
Estala o eixo de faia sob o peso de ambos,
uma deusa terrível e um herói fortíssimo.
Palas Atena empunha o látego e o bridão
e arremessa os corcéis unicascos de encontro
a Ares. Este espoliava o enorme Perifante
o mais valente etólio, progênie de Oquésio.
Despia-o da armadura o deus sanguinolento.
Atena põe (e faz-se invisível) o escuro
elmo de Hades. Invisa, Ares só vê Diomedes.
O matador de gente-larga Perifante,
enorme, ali mesmo onde, exânime, tombou
e se atira Diomedes, cavaleiro exímio.
E quando os dois se enfrentam, cara contra cara,
Ares, por sobre o jugo e as rédeas, pronto, o bronze
desfere, rapace, ávido por desalmar
o Tideide. A deusa, olhos-azuis, com a mão
o empolga e o faz voar no vazio, lançado longe,
além da biga. Então Diomedes, voz altíssima,
arroja o pique brônzeo. Atena o endereça
aos baixos, onde aperta o cinturão do deus.
Ali o fere e punge. A pele fina rasga-lhe
e a lança extrai do ferimento. Ares, o brônzeo,
berra, com um bramido de nove ou dez mil
homens, lutando a mando do nume da guerra.
Troianos e Aqueus tremem aterrorizados,
tão grande o urro de Ares belicoso. Assim
como um vapor das nuvens, tenebroso, exala-se
em tempo de calor, quando o vento colérico
tempestua, assim viu Diomedes o brônzeo Ares
subir, a par das nuvens, para a vastidão
do urânio céu. (...)

Tradução de Haroldo de Campos