sábado, novembro 29, 2014

"Primeira Ode Olímpica" (Píndaro) - Tradução de Mário Faustino

I

Água: primeiro dos bens.
                                         Mas Ouro
(chama acesa na noite) ofusca os tesouros inteiros
da altiva opulência: queres,
alma minha, cantar os Jogos?
                                               De dia não busques
Além do sol no ar deserto estrêla
mais ardente nem liça mais gloriosa,
mais cantável que Olímpia:
de lá vem a canção que estica as cordas
nos corações peritos
em celebrar-te, filho de Cronos: e êles vêm
por todos os caminhos rumo à mesa
(repleta) de Hierão.

manejador do cetro da justiça
na Sicília fecunda
e ceifeiro de todas as virtudes
em seus caules mais altos
e que sabe crescer com sua fama
pelo esplendor da música
enquanto nos deleita em mesa amiga.
                                                           Anda!
tira do gancho a lira dórica
se ainda tens o coração domado
pela Cáris de Pisa – glória de Ferênicos,
quando êste disparou (sem chicote!) nas margens
do Alfeu, rumo à vitória
do rei de Siracusa, amador de cavalos;
                                                        seu renome
esplende nessa terra de homens fortes
onde Pélops, o Lídio, foi morar,
Pélops,
          por quem se apaixonou Posêidon (o
que cinge, firme, a terra) quando Clôto
o retirou do vaso puro, o ombro
marfim luzindo.
                         Grandes maravilhas
(e verdadeiras) estas, porém quantas
Fábulas enfeitadas de mentira
encantam nossas mentes
                                    para lá da verdade...

II

Cáris,
Cáris o gênio a graça a quem devemos
Tudo o que nos encanta
devolvendo-lhe as honras, quantas vêzes
transforma em verdadeiro o que é incrível
O futuro é a melhor testemunha – e mais seguro
é dizer bem dos deuses. Pois direi
assim, filho de Tântalo (ao contrário
do que dizem os velhos) direi que
quando teu pai retribuindo aos deuses
os convidou para impecável festa
sôbre o Sipilo – monte que êles amam –
nesse dia o senhor do luminoso
tridente arrebatou-te

o coração partido de paixão. Cavalos, carros de ouro,
levou-te ao céu de Zeus aonde mais
tarde iria Ganimedes
prestar ao próprio Zeus igual serviço.
Ao desapareceres, procurando-te
os homens de tua mãe sem descobrir-te
e voltando sem ti, alguém, vizinhos
inventaram – despeito – que, cortados
a faca, tuas pernas, braços (em
água fervendo) foram já no fim
do banquete servidos e comidos.

Chamar um deus de canibal? Eu nunca!
Quem escapa ao castigo da blasfêmia?
Se mortal houve honrado pelos donos
do Olimpo, êsse foi Tântalo; só que
lambuzou-se de mel, com tanta sorte; insaciável,
provocou monstruosa punição: a pedra
enorme que lhe ergueu o pai dos deuses
sobre a cabeça, êle esperando a queda
que nunca vem e o deixa um tanto triste ...

III

Quarto suplício, junto a mais três, é acima
de suas fôrças: só por ter roubado
o nétar, a ambrosia (com que os deuses
o fizeram imortal) para dar aos amigos!

Como se engana aquêle que procura
esconder algo aos deuses ...
                                         Foi por isso
que resolveram devolver-lhe o filho
à desgraçada sorte humana. E quando
à flor da idade descobriu que o buço
o queixo começava a escurecer-lhe,
sonhou ganhar a noiva mais à mão,

Hipodaméia (filha ilustre de um
soberano de Pisa): a sós à noite ao pé
do mar grisalho o deus chamou que faz
rugir o abismo, o do tridente: e face
a face êste surgiu-lhe
                                E disse Pélops:
“Escuta aqui, Posêidon, se tiveste
algum prazer com meu amor (presentes
deleitosos de Cípris), prende a lança
de bronze de Oinomáos, e cinge-me de fôrça
e leva-me à terra do Élis em teu carro mais rápido.
O homem já matou treze heróis, treze
pretendentes, para adiar o casamento

da filha! Quem é fraco nunca enfrenta
grande perigo: mas, se a morte é certa,
por que ficar sentado à sombra, à espera
duma velhice inglória? A mim correr
o risco; a ti dar-me o triunfo”.
Falou e não perdeu seu tempo: o deus
por sua glória deu-lhe um carro de ouro
e cavalos alados incansáveis.

IV

Tendo quebrado a fôrça de Oinomáos, levou a virgem
para o leito e houve dela seis
príncipes ardorosos.
                             Ao pé do Alfeu, agora
com os mortos potentes se mistura
lá onde as multidões cercam seu túmulo
perto do altar acima
de todos venerado; mas a glória
de Pélops olha de longe lá de Olímpia
sôbre as arenas onde a ligeireza
disputa a ligeireza, a fòrça a fôrça.
(E o vencedor a vida inteira saboreia
alegria mais doce do que o mel

- pelo menos os jogos não traíram seus votos –
alegria que o dia passa ao dia
bem supremo de um homem...)

                                           Quero eu
coroar esse rei no tom eqüestre
e no compasso eólio. Pois meu canto
em seu panejamento glorioso
jamais vestirá outro que reúna
o gôsto pelo belo
e a fôrça irresistível.
Hierão, algum deus por teus desígnios
vela: fique sempre a teu lado, que mais doce
a vitória te seja em carro agílimo.
Na colina de Cronos luminosa
irei buscar o veio de louvores
dignos de celebrá-la:
                                pois a musa
para mim forja o dardo mais potente
Há grandezas de várias excelências,
a mais alta é dos reis. Não busques mais.
Pisem teus pés os cimos sempre, enquanto
a teu lado farei brilhar meu gênio
por toda parte, na vanguarda helênica.

NOTAS DO TRADUTOR

- A tradução foi feita a partir da inglêsa de Richmond Lattimore (em verso livre) e da francesa de Aimé Pucch (em prosa). Sem saber grego e sem ser um “métricien”, o tradutor, a tentar o impossível (reproduzir em português o mais complicado dos versos gregos) preferiu traduzir Píndaro em linguagem e versificação as mais atuais a seu alcance. Foi adotada, por outro lado, a orientação de alguns tradutores, inclusive de Lattimore, segundo a qual há muito de irônico nesta ode de Píndaro, mais jocosa (foi cantada pela primeira vez num banquete em honra de Hierão: não foi encomendada por êste; a encomenda, no caso, coube a Baquílide) do que pensam outros.

- Algumas anotações para a melhor compreensão do poema: foi composto para celebrar, em geral, os jogos olímpicos (donde o aparecimento do tantálida Pélops como personagem central e exemplo dado a Hierão) e, em particular, Hierão de Siracusa e seu cavalo Ferênicos, vencedores da corrida de cavalos montados nas olimpíadas de 476 antes de Cristo, ano em que foi composta a ode. Faz-se alusão, no poema, a uma vitória anterior de Ferênicos. Hierão, mais tarde, realizaria o voto expresso por Píndaro no final da ode: tanto em 470  como em 468 a.C., venceu as corridas de quadrigas, as mais ambicionadas pelos atletas gregos Lembrar também as diversas versões dos mitos de Tântalo, de Pélops e de Ganimedes, estes dois últimos amados, respectivamente, por Posêidon e Zeus (mais ou menos o Netuno e o Júpiter romanos); lembrar, em particular, que Pélops, servido no banquete aos deuses, teve um ombro comido por Demeter, sendo após reconstituído, num vaso puro, por Clôto, sendo-lhe aposto um ombro de marfim. N.B. no início da terceira tríade, Píndaro refere-se, para nós zombeteiramente, às várias versões do suplício de Tântalo, a mais recente sendo a da pedra suspensa sôbre a cabeça do condenado, ameaçando cair a qualquer momento. Há quem interprete êsses versos de outra maneira: Tântalo seria o último de quatro condenados, sendo os outros Títios, Sísifo e Íxion.

- Pisa: antiga cidade da Élida, às margens do rio Alfeu, perto do Templo de Olímpia.

- Cípris: um dos cognomes de Afrodite (Vênus).

- A ode é composta de quatro tríades: quatro estrofes, quatro anti-estrofes, quatro epodos. Era acompanhada pela “forminx”, a “lira dórica”, mencionada no poema. O esquema de metros, como sempre acontece em Píndaro, é complicadíssimo, segundo os entendidos um verdadeiro “show” de virtuosismo.
- No princípio da segunda tríade, notar o tema da beleza-verdade, verdade-beleza, comum em clássicos e românticos. Cf., especialmente, a famosa carta de Keats a Bailey sôbre o “sonho de Adão”.

- Píndaro: 518-438 a.C. o mestre do lirismo coral na Grécia.


FONTE:
Jornal do Brasil, Suplemento Dominical (03/11/1957), p.05  (disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_07)

Homero

Escrever o poema como um boi lavra o campo
Sem que tropece no metro o pensamento
Sem que nada seja reduzido ou exilado
Sem que nada separe o homem do vivido

Sophia de Mello Breyner Andresen