quinta-feira, maio 19, 2022

Camões, Lusíadas, V - 99-100 - Invectiva ao Gama e autorreflexividade


 Às Musas agradeça o nosso Gama

O muito amor da Pátria, que as obriga

A dar aos seus na lira nome e fama

De toda a ilustre e bélica fadiga;

Que ele, nem quem na estirpe seu se chama

Calíope não têm por tão amiga,

Nem as filhas do Tejo, que deixassem

às telas de ouro fino e que o cantassem 


Porque o amor fraterno e puro gosto

De dar a todo o Lusitano feito

Seu louvor, é somente o pressuposto

Das Tágides gentis, e seu respeito;

Porém não deixe enfim de ter disposto

Ninguém a grandes obras sempre o peito,

Que por esta ou por outra qualquer via

Não perderá seu preço e sua valia. 

terça-feira, maio 17, 2022

Camões - Lírica - Soneto X

Obras do grande Luis de Camões, principe dos poetas heroycos, & lyricos de Hespanha, novamente dadas a luz com os seus Lusidas, 1720.


Transforma-se o amador na cousa amada,

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho logo mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada.


Se nela está minha alma transformada,

Que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si somente pode descansar,

Pois consigo tal alma está liada.


Mas esta linda e pura semideia,

Que, como o acidente em seu sujeito,

Assim co'a alma minha se conforma,


Está no pensamento como ideia;

E o vivo e puro amor de que sou feito,

Como matéria simples busca a forma.


domingo, fevereiro 13, 2022

Mário de Andrade - 1922 (Tarsila do Amaral)

 

Quando eu morrer quero ficar,

Não contem aos meus inimigos,

Sepultado em minha cidade,

            Saudade.


Meus pés enterrem na rua Aurora,

No Paiçandu deixem meu sexo,

Na Lopes Chaves a cabeça

               Esqueçam.


No Pátio do Colégio afundem

  O meu coração paulistano:

Um coração vivo e um defunto

            bem juntos.


Escondam no Correio o ouvido

Direito, o esquerdo nos Telégrafos,

  Quero saber da vida alheia,

              Sereia. 


O nariz guardem nos rosais,

A língua no alto do Ipiranga


Para cantar a liberdade.

               Saudade...


Os olhos lá no Jaraguá

Assistirão ao que há-de vir,

O joelho na Universidade,

            Saudade...


As mãos atirem por aí,

Que desvivam como viveram,

As tripas atirem pro Diabo,

Que o espírito será de Deus.

             Adeus.