terça-feira, maio 22, 2007

Catulo, 41

Ameana, menina tão fodida,
cobrou-me dez mil muito bem contados,
essa tal de nariz todo disforme,
amante do falido Formiano.
Ó parentes, que tendes seu cuidado,
amigos, médicos, mandai vir todos!
Não é sã a menina nem costuma
diante do espelho enxergar-se como é.

(Tradução de João Angelo Oliva Neto)

segunda-feira, maio 21, 2007

Mimnermo 1

Que vida tem valor, sem de Afrodite
As da dádivas douradas? Antes quero a morte,
Se os beijos não tiver, e a cama e os apetites,
Que são da rubra mocidade a sorte,
Varões a porem nus e senhoritas.
(A idade, ao descambar num ser humano,
Imprime nele os males todos: tudo o irrita.
Nem o aviva mais o sol, o céu de Urano,
Nem nas crianças vê coisa bonita.
E as fêmeas o desprezam, tanto o soberano
Ao homem no final da vida prejudica.)

(Tradução de Antônio Medina Rodrigues)

domingo, maio 20, 2007

Alphonsus de Guimaraens - Ismália

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar
Viu uma lua no céu,
Viu uma lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava longe do céu...
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par
Sua alma, subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar.

Safo - Ode a Anactória

Dizem: O renque de carros ou de soldados
ou de navios é sobre a terra negra
a suprema beleza. Digo: é aquilo que
se ama.

Muito fácil fazer isto compreensível
a todos: - Helena, a que superou
toda beleza de humanos, ao mais nobre
marido

deixou atrás e foi a Tróia num navio.
Nem da filha nem dos pais queridos
nada se recordou, mas seduziu-a
Cípris.

Nas mãos de Cípris, é maleável a mente.
Eros faz nosso pensamento revirar-se
leve e faz-me lembrar agora Anactória
longe.

Quisera eu ver o encanto de seu andar
e a luz brilhante de seu rosto,
não carros da Lídia ou guerreiros
com armas.

(Tradução de Jaa Torrano)

sexta-feira, maio 18, 2007

Oswald de Andrade - Pronominais

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

quinta-feira, maio 17, 2007

Catulo, 3

Podeis chorar, ó Vênus, ó Cupidos,
e quantos homens mais sensíveis vivam:
Morreu o pássaro de minha amiga,
o pássaro, delícias da menina,
que bem mais que seus olhos ela amava,
pois era mel e tanto a conhecia
quanto a filha conhece a própria mãe
e de seu colo nunca se movia
mas saltitando em torno aqui e ali
somente a ela sempre pipiava.
Agora vai por via escura lá
de onde, dizem, ninguém voltou jamais.
Ah! malditas, vós, trevas más do Orco
que devorais as belas coisas todas:
um pássaro tão belo me roubastes.
Ah, que maldade! Ah, pobre passarinho!
Por tua culpa os olhinhos dela estão
vermelhos e inchadinhos de chorar.

(Tradução de João Angelo Oliva Neto)

Catulo, 2

Pássaro, delícias de minha amiga --
com quem brincar e ter no colo, a quem
no ataque dar a ponta dos dedinhos
e acres dentadas incitar costuma
quando lhe apraz ao meu desejo ardente
um capricho, um gracejo preparar,
não sei qual, só um consolo à sua dor,
creio, para acalmar o ardor assim --
pudesse eu como ela brincar contigo
e a mente esquecer pensamentos tristes!
Para mim é tão bom quanto à menina
veloz se diz que foi a maçã de ouro
que o cinto atado há muito enfim soltou.
(Trad. de João Ângelo Oliva Neto)

Poema 2B
Tão caro a mim quanto à moça
de pernas ágeis (dizem)
a maçã de ouro
graças à qual desatou a cintura
longamente ligada.
(Trad. de Haroldo de Campos)



terça-feira, maio 15, 2007

Balada do amor através das idades

Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria do meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal da cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão em Versailles
espirituoso e devasso,
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.

(Carlos Drummond de Andrade)

Catulo, 89

Gélio está magro. Pudera!
Tem u'a mãe tão bondosa
E tão cheia de saúde;
Tem uma irmã tão gostosa,

Tem um tio tão complacente,
Tem primas por todo o lado,
Como é que ele poderia
Deixar de ser tão mirrado?

Ainda que só tocasse
Naquilo que é interdito,
Mesmo assim compreenderias
Por que ele está um palito.

(Tradução de José Dejalma Dezotti)

sábado, maio 12, 2007

Carlos Drummond de Andrade - A paixão Medida

Trocaica te amei, com ternura dáctila
e gesto espondeu.
Teus iambos aos meus com força entrelacei.
Em dia alcmânico, o instinto ropálico
rompeu, leonino,
a porta pentâmetra.
Gemido trilongo entre breves murmúrios.
E que mais, e que mais, no crepúsculo ecóico,
senão a quebrada lembrança
de latina, de grega, inumerável delícia?

Catulo, 92

Lésbia só fala mal de mim, sempre, e não cala
nunca; que eu morra se ela não me ama.
Como sei? Também tenho tal sintoma; ataco-a
muito, mas que eu morra se não a amo.
(Tradução de João Angelo Oliva Neto)

Sem calar-se um só instante,
Lésbia sempre me difama
Pois que eu morra esturricado
Se essa mulher não me ama.

Como sei? Pois é a mesma
A situação em que estamos:
Eu sempre a cubro de injúrias,
Que eu morra se não a amo!
(Tradução de José Dejalma Dezotti)

Catulo,93

Não ligo a mínima, César,
Se estou mal em seu conceito.
Nem mesmo quero saber
Se você é branco ou preto.
(Tradução de José Dejalma Dezotti)


Não faço o mínimo, César, para te agradar.
Nem quero o saber se és branco ou preto.
(Tradução de Haroldo de Campos)

Pouco me importa, César, querer te agradar,
nem quero saber se és Grego ou Troiano.
(Tradução de João Angelo Oliva Neto)

Catulo,70

Minha mulher me diz que com ninguém se casa
menos eu, nem se Júpiter pedir.
Diz. Mas o que a mulher diz ao amante ardente
convém escrever no vento e na água rápida.
(Tradução de João Angelo Oliva Neto)


Com ninguém, diz minha amada,
Só comigo quer unir-se,
Ainda que o próprio Júpiter
A procurasse e pedisse.

Ela o diz; mas o que diz
A mulher ao louco amante,
Convém escrever no vento
Ou na rápida vazante.
(Tradução de José Dejalma Dezotti)

Catulo,43

Salve, moça de nariz não mínimo,
de pé não lindo,
de olhos não negros,
de dedos não longos,
de boca não breve,
de linguagem não muito distinta,
amiga do debochado Formiano.
A ti, beleza da província,
comparam minha Lésbia?

Ó século sem graça e sem raça.
(Tradução de Haroldo de Campos)


Catulo, 32

Amabo, mea dulcis Ipsitilla,
meae deliciae, mei lepores,
iube ad te veniam meridiatum.
Et si iusseris, illud adivuato,
ne quis liminis obseret tabellam,
neu tibi lubeat foras abire,
sed domi maneas paresque nobis
novem continuas fututiones.
Verum si quid ages, statim iubeto:
nam pransus iaceo et satur supinus
pertundo tunicamque palliumque.

Eu te peço, minha doce Ipsistila,
Delícia e encanto deste meu viver:
Convida-me a passar contigo a sesta.
Caso me convidares, cuida bem
De que não ponham tranca em tua porta
E não te dê vontade de sair.
Fica em casa, tranqüila, preparando-te
Para nove trepadas sucessivas.
Se preferires, vou agora mesmo:
Almocei bem e ora farto, ressupino,
Furo, de impaciência, túnica e toga.
(Tradução de José Paulo Paes)


Peço, minha boa Hipsistila,
minhas delícias, meus encantos, pede
que eu vá dormir junto contigo a sesta.
E se pedires cuida disto: que outro
não introduza entraves na portinha
nem queiras tu sair por aí fora.
Mas fica em casa, preparando para
nós umas nove contínuas trepadas.
E se algo fores fazer, chama logo,
que almoçado, deitado, e satisfeito,
tanto túnica eu furo quanto o manto.
(Tradução de João Angelo Oliva neto)

sexta-feira, maio 11, 2007

Cruz e Sousa - Caveira

I
Olhos que foram olhos, dois buracos
Agora, fundos, no ondular da poeira...
Nem negros, nem azuis e nem opacos.
Caveira!

II
Nariz de linhas, correções audazes,
De expressão aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos virginais, falazes?!
Caveira! Caveira!!

III
Boca de dentes límpidos e finos,
De curve leve, original, ligeira,
Que é feito dos teus risos cristalinos?!
Caveira! Caveira!! Caveira!!!

Charles Baudelaire - O Albatroz

Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.

À peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.

Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!

Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.


Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico em cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
A asa de gigante impedem-no de andar.

(Tradução de Guilherme de Almeida)

Épica

"A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,
o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas
trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades
de valentes, de heróis, espólio para os cães,
pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;
desde que primeiro a discórdia apartou
o Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles."
(Ilíada, I, vv.1-7, tradução de Haroldo de Campos).

"Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito
peregrinou, dês que esfez as muralhas sagradas de Tróia;
muitas cidades dos homens viajou, conheceu seus costumes,
como no mar padeceu sofrimentos inúmeros na alma,
para que a vida salvasse e a de seus companheiros a volta."
(Odisséia, vv.1-5, tradução de Carlos Alberto Nunes)

Armas canto, e o varão que, lá de Tróia
Prófugo, à Itália e de Lavino às praias
Trouxe-o primeiro o fado. Em mar e em terra
Muito o agitou violenta mão suprema,
E o lembrado rancor da seva Juno;
Muito em guerras sofreu, na Ausônia quando
Funda a cidade e lhe introduz os deuses:
Donde a nação latina e albanos padres,
E os muros vêm da sublimada Roma.
Musa, as causas me aponta, o ofenso nume,
Ou por que mágoa a soberana deia
Compeliu na piedade o herói famoso
A lances tais passar, volver tais casos.
(Eneida I, vv.1-15, Trad. de Manuel Odorico Mendes).

As armas e os barões assinalados
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana
E entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram;

E também às memórias gloriosas
Daqueles reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando
- Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram,
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram;
Cesse tudo que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
(Os Lusíadas I, vv.1-24)

Eneida I, vv. 1 - 15

Eu, que entoava na delgada avena
Rudes canções, e egresso das florestas,
Fiz que as vizinhas lavras contentassem
a avidez do colono, empresa grata
Aos aldeões; de Marte ora as horríveis
Armas canto, e o varão que, lá de Tróia
Prófugo, à Itália e de Lavino às praias
Trouxe-o primeiro o fado. Em mar e em terra
Muito o agitou violenta mão suprema,
E o lembrado rancor da seva Juno;
Muito em guerras sofreu, na Ausônia quando
Funda a cidade e lhe introduz os deuses:
Donde a nação latina e albanos padres,
E os muros vêm da sublimada Roma.
Musa, as causas me aponta, o ofenso nume,
Ou por que mágoa a soberana deia
Compeliu na piedade o herói famoso
A lances tais passar, volver tais casos.

Catulo, 30

Alfene immemor atque unanimis false sodalibus,
iam te nil miseret, dure, tui dulcis amiculi?
iam me prodere, iam non dubitas fallere, perfide?
nec facta impia fallacum hominum caelicolis placent.
quae tu neglegis ac me miserum deseris in malis.
eheu quid faciant, dic, homines cuiue habeant fidem?
certe tute iubebas animam tradere, inique, me
inducens in amorem, quasi tuta omnia mi forent.
idem nunc retrahis te ac tua dicta omnia factaque
uentos irrita ferre ac nebulas aereas sinis.
si tu oblitus es, at di meminerunt, meminit Fides,
quae te ut paeniteat postmodo facti faciet tui.

Alfeno, que esqueces e enganas parceiros unânimes,
já não sentes dó, ó cruel, de teu bom doce amigo?
Trair-me, enganar-me já não imaginas, ó pérfido?
As ímpias ações dos mortais não deleitam celícolas
e tu os ignoras e em males me largas tão mísero.
Mas diz, o que façam os homens, em quem tenham fé?
Perverso, decerto ordenavas-me a alma vender,
levando-me a esse amor como se fosse seguro
e agora sais fora e teus ditos e todos os teus feitos
permites que os ventos e as névoas os levem em vão.
Se tu já esqueceste, os deuses se lembram, se lembra
a Fé, que fará que teu feito te cause remorsos.

(Tradução de João Angelo Oliva Neto)

Catulo, 73

Desine de quoquam quicquam bene velle mereri
aut aliquem fieri posse putare pium.
Omnia sunt ingrata, nihil fecisse benigne
prodest, immo etiam taedet obestque magis;
ut mihi, quem nemo gravius nec acerbius urget,
quam modo qui me unum atque unicum amicum habuit.

Desiste de querer de alguém merecer algo
ou crer que alguém será reconhecido.
É tudo ingratidão, em nada é bom ter feito o
bem, não! Dá tédio, mais: faz mal qual fez
comigo, a quem ninguém mais grave e fundo fere
que aquele que só eu de amigo teve e único.

Comentários

-Embora não nomeado, acredita-se que o destinatário seja Marco Célio Rufo, que outrora tinha sido amigo do poeta. A queixa ou a imprecação, como aqui, dirigida a quem fora amigo é tópica e remonta a Arquíloco de Paros, frag.79
-desiste: Apóstrofe ao leitor.
-reconhecido: No original, pium. impios - Um beneficium implica um referre gratiam, "agradecer" e alguém que não seja reconhecido não é pio.

(Tradução e comentários de João Angelo Oliva Neto)

quinta-feira, maio 10, 2007

Olavo Bilac #2 - A um poeta

A um poeta

Longe do estéril turbilhão da rua
Beneditino, escreve! No aconchego
do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E natural o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a beleza, gêmea da Verdade
Arte pura, inimiga do artíficio
É a força e a graça na simplicidade.

Olavo Bilac - Via Láctea (XIII)

"Ora (direis!) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que para ouví-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."

Cantiga de amor

Senhor fremosa, pois me non queredes
creer a cuita ´n que me ten amor
por meu mal é que tan bem parecedes!
E por meu mal vos filhei por senhor
e por meu mal tan muito ben oi
dizer de vos! E por meu mal vus vi,
pois meumal é quanto ben vos avedes!

E pois vus vos da cuita non nembrades,
nen do affan que m´amor faz prender
por meu mal vivo mais ca vos cuidades!
e por meu mal me fezo Deus nacer!
E por meu mal, non morri u cuidei
como vos viss´; e por meu mal fiquei
vivo, pois vos por meu mal ren non dades!

E d´esta cuita ´n que me vos teendes,
em que og´eu vivo tan sen sabor
que farei eu pois mi-a vos non creedes?
que farei eu, cativo pecador?
que farei eu, vivendo sempre assi?
que farei eu, tque mal-dia naci?
que farei eu, pois me vos non valedes?

E pois que Deus non quer que me valhades,
nem me quirades mia coita creer,
que farei eu - por Deus, que mi-o digades!
que farei eu, se logo non morrer?
que farei eu, se mais a viver ei?
que farei eu, que conselhor non sei?
que farei eu, que vos desamparades?


Comentários:
- Cantiga Atribuída a Martim Soares no Cancioneiro da biblioteca nacional (n.130) e no da Ajuda (n.46)
- Poesia de molde provençal - repetição do desgosto do amante ("Que farei eu? Que farei eu?")
- Cantiga de amor em sua estrutura.
-Cantiga composta em decassílabos.
-É considerada uma cantiga de maestria.
Primeira estrofe: Antítese. Por seu mal, a viu.
vv.1 senhor fremosa: O uso deste vocativo já sinaliza que tal cantiga é uma cantiga de amor.
vv.2 creer: Do latim credere (confiar, acreditar)
vv.4 filhei = tomei.
vv.5 oi = ouvi.
vv.5-6 Antítese: "Para meu mal, ouvi falar bem de você".
vv.8 nembrades = lembrais
Segunda estrofe = A antítese é feita entre Vida x Morte.
vv.9 affan = pena, desespero.
vv.12 u = onde.
vv.14 ren = coisa.
vv.16 og´= hoje (etimologia: og - oj - hoj -hoje)
vv.17-21 o poeta se pergunta como será o futuro, já que nada irá mudar.
vv.18 "Cativo pecador" - Cativo (=pobre, desgraçado) pecador (pecar = errar; não tem um sentido teológico)
vv.22-23 = força superior = destino
vv.24 mi-o digades = diga-me isso.
vv.25 a = há
vv.25 ei = hei.
vv.27 que conselho non sei = que não tenho resposta



Cantiga de escárnio

Ai, dona fea, foste-vos queixar
que vos nunca louv´eu en meu cantar;
mais ora quero fazer un cantar
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus me perdon,
pois avedes a tan gran coraçon
que vos eu loe, en esta razon
vos quero loar já toda via:
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei
em meu trobar, pero muito trobei; *sandia = doida.
mais ora já um bon cantar farei,
eu que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia*!

(João Guilherme de Guilhade, CV1097, CBN 1486)

Comentários:

-Não se diz o nome de quem recebe as invectivas; é, portanto, uma cantiga de escárnio.
"Ai, dona fea" - Sátira às cantigas de amor. Em vez de louvar à um "senhor fremosa", fala a uma "dona fea".
-A sátira fica evidente, pois o poema põe atributos da cantiga de amor ao contrário: fea (em vez de fremosa) velha (em vez de jovem) e louca[sandia] (em vez de boa).
- loar = louvar.
- sandia = doida.


Safo - Hino a Afrodite

Afrodite imortal de faiscante trono
filha de Zeus tecelã de enganos peço-te:
a mim nem mágoa nem náusea domine
Senhora o ânimo

Mas aqui vem - se já uma vez
a minha voz ouvindo-a de longe
escutaste e do pai deixando a casa
áurea vieste

atrelado o carro. Belos te levavam
ágeis pássaros acima da terra negra
contínuas asas vibrando vindos do céu
através do ar,

e logo chegaram. Tu ó Venturosa
sorrindo no rosto imortal indagas
o que de novo sofri, a que de novo
te evoco,

o que mais desejo de ânimo louco
que aconteça. "Quem de novo convencerei
a acolher teu amor?" "Quem, Safo, te faz sofrer?"

"Se bem agora fuja, logo te perseguirá,
se bem teus dons recuse, virá te dar,
se bem não ame, logo amará - ainda que
ela não queira."

Vem junto a mim ainda agora, desfaz
o áspero pensar, perfaz quanto meu ânimo
anseia ver perfeito. E tu mesma - sê
minha aliada.

(Tradução de Jaa Torrano)

quarta-feira, maio 09, 2007

Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

(Manuel Bandeira in: Lira dos cinqüent´anos)

Almeida Garrett

Não te amo

Não te amo, quero-te: o amar vem d´alma.
E eu n´alma - tenho a calma,
A calma - do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida - nem sentida
A trago eu já comigo
Ai! não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado
De mau feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! Não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!...não te amo, não.

(Almeida Garrett in: Folhas caídas)

domingo, maio 06, 2007

Paulo Leminski #2

pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando.

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez eu sorria, ou diga:
- Alô, Iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com seus sortilégios)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

(Manuel Bandeira in: Opus 10)

Poema só para Jaime Ovalle

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada)
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação.
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei
[pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que
[amei.

(Manuel Bandeira in: Belo Belo)

Morte absoluta

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
a lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

(Manuel Bandeira in Lira dos cinquent´anos)

Momento num café

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

(Manuel Bandeira in: "Estrela da Manhã)

Profundamente

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondo de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes ben risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
-Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

(Manuel Bandeira in:"Libertinagem")

Carnaval - Epígrafe

Ela entrou com embaraço, tentou sorrir, e per-
guntou tristemente - se eu a reconhecia?
O aspecto carnavalesco lhe vinha menos do
frangalho de fantasia do que do seu ar de extre-
ma penúria. Fez por parecer alegre. Mas o sor-
riso se lhe transmudou em ricto amargo. E os
olhos ficaram baços, como duas poças de água
suja...Então, para cortar o soluço que adivi-
nhei subindo de sua garganta, puxei-a para ao pé
de mim, e com doçura:
- Tu és a minha esperança de felicidade e
cada dia que passa eu te quero mais, com perdida
volúpia, com desesperação e angústia...

(Manuel Bandeira in "Carnaval")

Gesso

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
- o gesso muito branco, as linhas muito puras -
Mal sugeria a imagem de vida
(Embora a figura chorasse).

Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina
[amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico.

Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmen-
[tos, recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo
[mordente de pátina...

Hoje este gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

Soneto inglês nº2

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar, senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé no mundo além do mundo. E então,
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.

(Manuel Bandeira in: Lira dos cinquent´anos)

sábado, maio 05, 2007

Augusto dos Anjos

Versos íntimos
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Vinícius de Moraes

Soneto da devoção

Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.

Essa mulher é um mundo! – uma cadela
Talvez... – mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!

Ítaca

Se partires um dia rumo a Ítaca
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

Konstantino Kavafis (1863-1933)
(Tradução de José Paulo Paes)
in
: O quarteto de alexandria.

Horácio # 3

Ode III, 30

Mais perene que o bronze um monumento
ergui, mais alto e régio que as pirâmides,
nem o roer da chuva nem a fúria
de Áquilo o tocarão, tampouco o tempo
ou a série de anos. Imortal
em grande parte, a morte só de pouco
de mim se apossará. Que eu semprenovo,
acrescido em louvor, hei de crescer
enquanto ao Capitólio suba o Sumo
sacerdote e a calada vestal. Aonde
violento o Áufido espadana, aonde
depauperado de água o Dauno agrestes
povos regeu, de humilde a poderoso
dirão que eu passei: príncipe, o primeiro
em dar o eólio canto ao modo itálico.
Assume os altos méritos, Melpómene:
cinge-me a fronte do laurel de Apolo.

(Tradução de Haroldo de Campos).

Horácio, Ode I, 5 - Haroldo de Campos

Ode I, 5

Quem, Pirra
agora
se lava em rosas
(pluma e latex)
na rosicama do
teu duplex?
Quem,
onda a onda,
do teu cabelo
desfaz a trança
platino-blonda?
Pobre coitado
inocente inútil
vai lamentar-se
para toda a vida.
Um deus volúvel
mais do que a brisa
muda em mar negro
seu lago azul.
Pensava que eras
dócil-macia
toda ouro mel.
Não és. Varias
(Ah quem se fia
no fútil brilho
desse ouropel!)
Eu, por meu turno,
todo ex-aluno,
esta oferenda
ao deus Netuno
padripotente
no teu vestíbulo
deixo suspensa
(vide a legenda):
VMIDA AINDA
A TVNICA

(Tradução de Haroldo de Campos)

Safo

Parece-me par dos deuses
ser o homem que ante de ti
senta-se e de perto te ouve
a doce voz

e o riso desejoso. Sim isso
me atordoa o coração no peito:
tão logo te olho, nenhuma voz
me vem

mas calada a língua se quebra,
leve e sob a pele um fogo me corre,
com os olhos nada vejo, sobrezum-
bem os ouvidos

frio suor me envolve, tremo
toda tremor, mais verde que relva
estou, pouco me parece faltar-me
para a morte.

Mas tudo é ousável e sofrível...

(Tradução de Jaa Torrano)

sexta-feira, maio 04, 2007

Catulo, 5 - 3 traduções

Vivemos, minha Lésbia, amemos sempre,
E os rumores dos velhos rabugentos
Saibamos desprezar, tê-los em nada.
O sol pode morrer, tornar de novo;
Nós, se uma vez a breve luz nos morre,
Uma e perpétua noite dormiremos.
Oh! mil beijos me dá, depois um cento,
E mil outros depois, mais outro cento,
E outros mil, e outros cem; e quando ao cabo
Muitos milhares ajuntarmos deles,
Em maga confusão juntá-los-emos.
Que não saibamos nós, que ninguém saiba
Nem maldoso nenhum possa invejar-nos
Se de tantos souber, tão doces beijos.

(Tradução de Almeida Garrett).

********

Vivamos minha Lésbia, e amemos,
e as graves vozes velhas
- todas -
valham para nós menos que um vintém.
Os sóis podem morrer e renascer:
quando se apaga nosso fogo breve
dormimos uma noite infinita.
Dá-me pois mil beijos, e mais cem,
e mil, e cem, e mil, e mil e cem.
Quando somarmos muitas vezes mil
misturaremos tudo até perder a conta:
que a inveja não ponha o olho de agouro
no assombro de uma tal soma de beijos.

(Tradução de Haroldo de Campos).

********

Vamos viver, minha Lésbia, e amar,
e aos rumores do velhos mais severos,
a todos, voz nem vez vamos dar. Sóis
podem morrer ou renascer, mas nós
quando breve morrer a nossa luz,
perpétua noite dormiremos, só.
Dá mil beijos, depois outros cem, dá
muitos mil, depois outros sem fim, dá
mais mil ainda e enfim mais cem - então
quando beijos beijarmos (aos milhares!)
vamos perder a conta, confundir,
p'ra que infeliz nenhum possa invejar,
se de tantos souber, tão longos beijos.

(Tradução de João Angelo Oliva Neto)

Hipônax

Pela onda extraviado,
e em Salmidesso, nu,
na mais negra noite os trácios tufocomados
o peguem e aí se farte de muitos males
o pão escravo comendo
hirto e frio do fluxo marinho
muitas algas lhe escorram
lhe batam os dentes como um cão sobre a boca
caído e extenuado
à beira d'água vomitando a onda.
Isso eu queria ver,
que ele me ofendeu, aos pés calcou as juras,
ele que antes era amigo.

Catulo, 9

Verânio, dos meus trinta mil amigos
primeiro para mim, tu então vieste
de volta a casa para os teus Penates,
os teus irmãos e a tua velha mãe?
Vieste. Ó mensageiros da alegria!
De novo são e salvo eu te verei
e te ouvirei contar, como costumas,
lugares, feitos e nações da Ibéria,
e te abraçando eu beijarei teus olhos
e a tua bela boca. Homens felizes,
que pode haver de mais feliz do que eu?

(Tradução de Francisco Achcar)