sábado, maio 18, 2013

Ilíada, Canto I (Tradução de Antônio Medina Rodrigues)

De Aquiles o Pelida, ó deusa, canta a cólera
Que a Aqueus fatal torceu com ais sem conta, e ao Hades
Atro almas de heróis bravos jogou, mas seus corpos
De pasto a cães ofereceu e abutres todos.
Pois coisa tal Zeus bem havia deliberado,
Desde o início, quando em rixa se enfrentaram
O Atrida, líder de varões, e o divo Aquiles.


Qual deus entre os demais os levou a baterem-se?
Apolo – o filho de Latona e Zeus, que odiando
Ao rei, má doença põe-lhe à tropa, e povos morrem,
Por ofendido haver o rei a Crises nobre,
Às lestas naus de Aqueus de fato este viera
A filha reaver, prêmios alçando infindos,
E no áureo cetro as faixas do frecheiro Apolo
Às mãos, a todos Aqueus implorou, e mais
Aos dois filhos de Atreu, os líderes de povos:
“Ó vós Atridas, mais Aqueus de finas grevas,
Dêem-vos os donos de lares Olímpios ruir
Tróia Priâmea, e ao lar voltardes, pois, em júbilo.
Mas aceitai-me os dons, livrai-me a cara filha,
Tementes ao filho de Zeus, o Arqueiro Apolo”.
E concordaram todos os demais Aqueus
Que honra se desse ao vate, e os prêmios se acatassem.
Tal não aprouve à alma do Atrida Agamenon,
Que fala rude com o velho, e então repele-o:
“Mais não te veja eu, velho, as ocas naus rondando-me,
Seja agora isso faças, ou vindo depois,
Não mais te salvarão do deus ou cetro ou faixas.
A moça não libero, antes da idade vir-lhe,
No paço de Argos meu, e longe de seu pai,
No meu tear a trabalhar, e a cama armando-me.
Oh não me irrites, pois, e enquanto há tempo, salva-te”.

Falou, e curvo à fala, o velho estremeceu,
E à beira do mar plurissoante ele se foi,
Dali se alonga, e então a Apolo Arqueiro evoca,
A quem Letó de coifa bela dera à luz:
“Guardião de Crisa, ó deus do Arco de Prata, escuta-me,
Rei meu, que Cila salvas, e és bastião de Tênedos,
Se um coroado altar, Esmínteu, eu te arranjei,
Se pingues vítimas outrora te queimei,
De táureas coxas, cabras, vinga este meu voto,
Paguem os Dânaos com tuas flechas minhas lágrimas”,
Orou destarte, e logo o escuta Febo Apolo,
Que de alma irada Olímpios cumes descendeu,
O arco aos ombros leva e a lacrada aljava,
Na espalda lhe tilintam, dele irado, as flechas
Do se moverem, e à noite se assemelhava.
Das naus não longe ele parou, mandou seu dardo
E do arco sai de prata um som que já perfura,
Antes de tudo, mulas, e velozes cães,
Depois nos homens mira a flecha viperina,
E fere-os, e de cadáveres se enchem piras.
Matam flechas do deus na armada nove dias,
E ao décimo, porém, chama Aquileu seus pares,
Idéia que Hera de alvos braços lhe incutira,
Por sofrer deles, vendo à morte os caros Dânaos.
Depois que arautos convocados se ajuntaram,
Ergueu-se então Aquiles, de ágeis pés, falou-lhes:
“Atrida, acho que assim voltas estamos dando,
E, aliás, atrás, se é o caso de à morte fugirmos,
Pois de outra forma igual nos matam guerra e peste.
Que um adivinho, pois, ou vate agora ouçais,
Ou o onirista – até o sonhar de Zeus provém –,
Que vai dizer-nos por que há ira em Febo Apolo.
Por votos, quiçá, clame, ou talvez hecatombes.
Ou fumo de carneiro, ou de leiteiras cabras,
E grato então assim com isto a nós livre da peste”,
Disse ele, e se assentou, e levantou-se Calcas,
Testórides, que sabe ler a todas coisas,

Seja as do sido, ou sendo, ou as do vir a ser.
Foi nosso guia ao conduzir as naus aqui,
Pois que lhe dera Apolo um mágico talento,
Sensato, pois, falou e disse então Testórides:
“Filho de Zeus, ó Aquiles, queres que eu explique
A cólera de Apolo, o deus que flecha longe?
Direi se me jurares e me prometeres
Que, atento, com tuas mãos e falas me proteges,
Um homem vou irar que entre os Argeus, eu sei,
É o sumo, e em quem têm confiança os Aqueus todos.
Mais bravo é um rei quando persegue um homem fraco.
Sua ira longa oculta e astuto a retempera,
E até bem tarde ele a preserva, até que estourar
Em suas maquinações, diz se me vais salvar”.
E de resposta disse Aquiles de pés breves:
“Diz o segredo que tu sabes, tem coragem,
E, por Apolo caro a Zeus, a quem, ó Calcas,
Mistérios revelaste em oração aos Dânaos,
Ninguém enquanto eu viva, e à terra os olhos abra
Entre todos os Dânaos vai meter-te as mãos
Junto das ocas naus, inda Agamênon digas,
Que entre os Aqueus se arroga ser o maioral”.
Por fim, se recobrando, sem pechas falou:
“O deus por votos não anseia, ou hecatombes,
Mas pelo vate sim, que o Atrida há repulsado,
Ao lhe enjeitar os dons, mas lhe tirando a filha.
Daí que as dores o Frecheiro deu, e dará,
Dânaos não livrará antes disso, dessa peste,
Antes sem mancha e sem negócio ele devolva,
A jovem de olhar vivo, mais uma hecatombe
Em Crisa. E só com isso iremos convencê-Lo”,
Falou, e se assentou, então se lhes levanta
O herói Atrida amplo mandão Agamenon,
Indignado, irrigam-no com ódio escuro
As fúrias a faiscar em suas hirtas pupilas.
Antes de todos outros, olha a Calcas, e diz-lhe:
“Jamais, vate da peste, um bem tu me previste.

E decifrar maldades é teu prazer sumo.
Não atas nem desatas com tua fala idiota,
E ora teu vaticínio aos Dânaos alardeia
Que o mal que o Frechador vem disso mesmo,
O haver por ela eu enjeitado os raros dons,
Sem dúvida, porque a quero em minha casa,
E mais que a Clitemnestra, enfim, a considero,
Esposa minha, e que não é melhor do que ela,
Seja no corpo, ou na figura, na alma ou óperas.
Mas, se é destino, que assim seja, eu a devolvo.
O povo quero eu salvo, e não beirando a morte.
Um dom, porém, já me arranjai, que eu só não fique
Desdoado entre os Argeus, que tal não tem sentido!
Meu dom – olhai todos! – ficou sem paradeiro!”.
Então divo Aquileu de fortes pés falou-lhe:
“Glorioso Atrida, e mais que todos ganancioso!
De onde é que te vão dar um dom Aqueus geniais,
Se bens sem conta expostos em comum não vemos?
O que das vilas se tirou foi partilhado.
Reuni-los novamente não agrada aos povos,
Ao deus de volta a moça mandes, pois Aqueus
Três, quatro vezes vão-te dar, se o Pai nos der
Tróia arrasar a cidadela de bons muros”.
E o forte Agamenon, a responder, lhe disse:
“Assim, divo Aquileu, ainda que lindo, à idéia
Não te eximas, pois não me iludes nem me escapas.
Enquanto guardas o teu dom, queres que eu fique
Só qual credor, e pedes que eu devolva a bela?
Se um brinde, enfim, me derem os Aqueus magnânimos,
Um brinde à minha altura, justiça haverá.
Porém, se não me dão, vou confiscar então
O teu, ou o de Ájax tomar, ou de Odisseu
Eu pego e levo, e vai doer onde eu chegar.
Mas tal assunto deixe-se agora de lado.
Eia, no mar vamos nau negra pôr agora,
Lá os bons de remo lá reunamos, e hecatombe,
E a que tem as belas faces embarquemos.

Um homem deliberador que seja o guia,
Divo Odisseu talvez, Idomeneu, Ajax,
Ou tu Pelida, entre os varões o incomparável,
E Apolo por santas ações enfim persuadas”.
E olhando-o mal, disse-lhe Aquiles de pés breves:
“Ó papa-prendas, que alma sem qualquer pudor,
Como um sensato Aqueu se fia em tua palavra,
Entre caminhos de homens com brio e vigor?
Não vim lutar aqui por causa dos hostis
Troianos: devedores meus não foram nunca
A mão jamais puseram nos meus bois, corcéis,
De Ftia, fértil de varões, nas searas minhas
Não buliram, que daqui a ali o caminho é longo,
Tem vagas fragorosas, e montanhas altas.
Ió, ó estupor, nós te seguimos afim gozes,
A honrar a teu irmão, e a ti, cara de cão!
Nem te perturbas pelas lutas contra os Ílios,
Com quem não te preocupas e a quem não respeitas,
Porque cobiças na verdade é arrebatar-me
Os dons que Aqueus me deram, para honrar-me os suores,
Não há outros dons iguais aos teus, quando os Aqueus
Tróicas cidades aniquilam bem povoadas.
Porém, da augusta guerra e seus botins o máximo
Destes meus braços é que vem, e se há partilha,
Tua parte é sem igual, de minha parte eu pouco
Às minhas naus carrego, após tanto lutar.
Agora mesmo volto a Ftia, é bem melhor
Ir para casa em curvas naus sem nem um pouco
Aqui permanecer sem brilho, a encher-te a pança!”.
E lhe responde o chefe de homens Agamênon:
“Foge daqui, se a alma te rói nem vou pedir
Que só por mim aqui tu fiques. Tenho meus outros,
Que as honras me darão, Zeus sapiente ao máximo.
Dos divos basileus és quem mais abomino,
Só lutas vives a buscar, combates, guerras.
E se és forte demais, um deus te fez capaz!
Com as tuas naus e amigos teus volta a teu lar,
Manda nos Mirmidões, penar por ti não vou!

Não ligo se tu estás irado, e ainda ameaço:
Se Febo Apolo vai Criseida me tomar,
Com nau e amigos meus vou devolvê-la, e minha,
Porém, terei Briseida, pois, que é tua prenda, e vou
Até tua tenda, e, que, por fim, aprendas:
Mais forte eu sou do que és, e perde quem quiser
Igual falar comigo e a mim se equivaler”.
E fala, e no Pelida nasce a mágoa, e ao seu peito
Aveludado se transtorna em duplas ânsias:
Se os dispersando, tira à cinta a aguda espada,
Para fundo embebê-la no corpo do Atrida,
Ou o ódio a suplantar, sua alma suavizava.
Enquanto na alma e nos sentidos ele agita-se,
E já sacando o gládio, Atena esplende Olímpia,
Pois que a mandara a deusa bracinívea Hera,
Por se condoer dos dois heróis, de quem gostava.
E às costas dele pára, a coma loira pega-lhe,
Só ele, aliás, a via – e nenhum dos demais.
Tremeu, voltou-se para vê-la, e viu enfim
Palas Atena, os magos olhos a alumbrá-lo.
E aladas falas a dizer-lhe por fim disse:
“Filha de Zeus Egífero, vens afinal
Testemunhar excessos do Atrida Agamenon?
Eu te esconder não vou o que espero aconteça:
Por erros tais que a morte lhe receba breve”.
E a de olhos glaucos diva Atena lhe profere:
“Escuta-me, se aceitas, vim cessar tua fúria.
Do céu Hera expediu-me, a diva de alvos braços,
Ela condói-se de ambos, muito estima os dois:
Do gládio tira a mão, do peito a tua raiva.
Com falas, se quiseres, tu podes xingá-lo,
Pois do que vai haver logo te dou aval:
Três vezes mais tudo receberás de prendas,
Em paga desta ofensa, e em nós repõe tua crença”.
E ao responder lhe diz o herói de pés velozes:
“Importa entre os divinos, deusa, algo jurar,
Que mesmo doendo na alma, será a solução

Ouvirmos os divinos é sermos ouvidos”.
Disse, e lhe cai da cinta a argêntea mão pesada,
E o gládio grande à cinta pôs, nem respondeu
À voz de Atena, que, com demais deuses, foi-se
Aos cimos Olimpiais do egífero Cronida.
Com gritos bravos o Pelida uma vez mais
Fala ao Atrida sem seu ódio sofrear:
“Borra de vinho, olho de cão, e ao peito um veado!
À guerra nunca a te bateres com o povo,
E às armadilhas ir com Aqueus espertos
Nunca tu ousaste, que isto é morte para ti.
Melhor te quadra na ampla esquadra dos Aqueus
Os dons surripiar de quem de ti discorde.
Ó rei-papão de povos, a ninguém governas!
E a prova do que eu digo é que tu segues vivo!
Porém põe na memória o que te falo agora:
Por este cetro, não crescido mais de cepa
Ou folha, desque aos montes seu caule deixou,
E onde não cresce a flor, pois faca ênea o limpa
De folha e escória, e que os Aqueus agora ainda
Erguem nas santas mãos – porque há, por fim, as leis
Que a Zeus honoram – santo será meu jurar:
Fará falta Aquileu, um dia, aos Aqueus todos,
E ainda sofras, nada poderás fazer-lhes
De útil, se sob Heitor mata-varões inúmeros
Caiam morrendo, e em tua alma o remoerás.
Pois que ofendeste entre os Aqueus ao sumo herói”.
Tal proferindo, à terra o herói jogou seu cetro
Em furos cravejados de ouro, e se assentou
Diante do Atrida, que bufava, e aos dois Nestor
Dulcíloquo se eleva, o Pílio orador sumo
Dimana-lhe da língua a voz mais que o mel doce.
Duas gerações de homens falantes precederam-no,
E que antes dele são nascidos e nutridos
Na diva Pilos, e entre os outros reinou ele,
E bem intencionado disse e lhes falou:
“Grã dor visita o solo Acaio, ó numes!

Disto se alegrariam Príamo e Priâmidas,
Troianos por igual de ouvi-lo gostariam,
Se acaso têm notícia dessas rixas mútuas,
Por parte dos melhores no siso e na luta.
Mais do que eu, sois moços, então me escutai!
Lutei, por certo, um dia, com varões mais fortes
Que vós, e nunca eles me diminuíram.
Não mais verei homens assim, e jamais vira,
Como Perito e Dríanto, que os povos leva,
Caineu, Exádio e o Polifemo celestial,
Teseu Egeida, qual um nume. Eram fortíssimos
Tais homens epictônios que aqui viveram,
Contra fortíssimos lutavam tais fortíssimos,
E o montês centauro sem dó eles matavam,
Com eles eu topava ao retornar de Pilos,
Ínvia terra afastada, porém me chamavam.
Por mim mesmo eu lutava, pois ninguém com eles
Se iria medir, hoje são homens epictônios.
Se eu ponderava, ouviam-me, e se persuadiam.
Convencei-vos também. Melhor é convencer-vos!
E, belo que és, nada de à virgem tu tocares,
Que a deixes, pois lha deram como dons Aqueidas,
Nem tu, Pelida, queiras arrostar o rei
De frente a frente, uma honraria tal jamais
Teve outro rei cetrado a quem Zeus glória dera!
Tu te crês forte? Mas a deusa deu-te o porte.
Porém mais forte ele é, por comandar a muitos.
Pausa tua ira, Atrida, e a Aquiles também
Rogo que a raiva deixe, pois grã muro ele é
Para Aqueus todos na batalha traiçoeira”.
E, ao responder-lhe, diz o forte Agamenon:
“Todas e quantas, velho, dizes, são bem sábias.
Porém, este homem quer ficar acima de outros,
Mandar deseja em todos, em todos reinar,
Ou indicar, não vai, porém, creio, vencer-me.
Se os imortais quiseram-no tornar um bravo,
Por causa disso lhe garantem injuriar?”.

E lhe atalhou o divo Aquiles lhe dizendo:
“Talvez frouxo e palerma então seria chamado,
Se no que mandas eu a tudo aquiescesse,
Para os demais vai falar isso, pois em mim
Não mandas, nem penso jamais te obedecer.
E no juízo ponhas o que passo a expor-te:
Por ti, por ela ou outro eu não mais lutarei,
Pois me tomaste os dons com que outros me brindaram.
Porém, nos que na minha negra nau se aninham,
Não ponhas a mão neles sem que eu te consinta.
Tenta o contrário, para ver, como estes vão
Teu sangue negro ver a me pingar da lança”.
Ambos se elevam, vozes ríspidas renhindo,
E junto às naus Aquéias se amansou o barulho.
Às tendas foi-se Aquiles, e às naus niveladas.
Com o Menécio vai, e mais amigos vão.
Por fim atraca o Atrida então a nau bem lépida,
Dentro vinte remeiros mais uma Hecatombe
Ao deus enviada, e vai Criseida à face rósea,
Que por fim entra, e vai de guia o astuto Ulisses.
Zarpando vão, já singram águas verdes, úmidas.
E pede o Atrida a todos que se purifiquem,
E que as escórias do lavar ao mar se atirem,
Completas hecatombes para Apolo imolam-se
No estéril rio do mar: são bois, cabras inúmeras,
Do fumo o aroma sobe ao céu, e se dispersa,
Como é duro guerrear! Não declinou, porém,
Agamenon das iras que ao Pelida ferem.
Por Euribates e Taltíbio ele chamou,
Arautos seus, ministros também excelentes:
“À tenda do Aquileu Pelida ide da mão
Pegar, trazer Briseida das faces formosas,
Caso não dêem, talvez eu mesmo então a tome,
Eu vou com minha turma, e vai-lhes ser pior!”,
Ele disse, e expediu-os, com fala frenética.
Mau grado seu, à praia vão do mar sem fruto,
Batéis, naus mirmidônias por fim lá toparam,

Sentado à tenda o Atrida topam junto às naus,
Que nem sorriso esboça ao ver quem vinha vindo,
E ambos tremendo por respeito ao basileu,
Não lhe disseram nada nem lhe proferiram,
Ele, porém, os entendeu na alma, e diz-lhes:
“De Zeus e de homens, salve arautos mensageiros!
Em vós culpa não há, porém a tem o Atrida,
E que por causa da jovem Briseida vos mandou,
Traz logo a bela, eia, meu Pátroclo divino,
E dá-lhes a levá-la, e por fim testemunhem,
Ante os mortais e deuses bem-aventurados,
E o ínvio rei, se houver falta de mim
Para afastar dos outros um mal vergonhoso,
Pois que o Atrida irado está, e ao senso hesita,
Já nada prover sabe atrás ou pela frente,
A fim que Aqueus pelejem salvos junto às naus”,
Disse ele, e Pátroclo entendeu bem seu amigo,
E traz da tenda a jovem de bonitas faces,
E deu-lha aos dois, que às naus Aquéias logo a levam,
Ela, mulher, a contragosto foi-se, em choro,
À parte senta Aquiles, e assim se deixou,
A praia do mar alvo mira e o mar escuro!
As mãos levanta e à cara mãe não pouco pede:
“Ó mãe, por que, embora fugaz tu me hás parido?
Com honras me devera cumular o Olímpio
Atroador da altura, e nada me cumpriu.
Agamenon Atrida, que amplo reina, ofende-me,
Tomou-me o dom que é meu, e me oprime em pessoa”,
Lagrimante falou, e ouviu-o a augusta mãe.
Desde o fundo do mar, e junto ao pai ancião,
Das águas ela alçou-se e lépida qual fumo
Sentar veio do lado dele, que chorava,
Da mão o acariciando, e então disse e falou-lhe:
“Que dor na alma te vai, filho, por que tu choras?
Abre-te então, e fala, a fim saibamos juntos!”.
E diz-lhe o fundo arfante Aquiles de pés ágeis:
“Por que contar-te tudo eu devo, se tu o sabes?

Em Tebas estivemos, vila santa de Hétion,
Nós a tomamos e até aqui trouxemos tudo,
E que os Aqueidas repartiram muito bem.
Criseida, à face bela, deram ao Atrida,
Crises depois, vate de Apolo Frechador,
Às naus veio de Aqueus de túnica de bronze
A filha, por resgate infindo, reaver,
Faixas de Apolo Frechador tendo nos braços
Sobre áureo cetro, e enfim ele a todos implora,
Mais, porém, aos Atridas, líderes de povos.
Ponderam todos os demais Aqueus então
Honrar-se ao vate, e se acatarem raras dádivas.
Tal não aprouve à alma do Atrida Agamenon,
E que, olhando-o feio, algo tremendo lhe falou.
De volta vai o velho aborrecido, Apolo
Ouviu-o assim pedir, porque dele gostava.
Vem sobre Argeus a flecha má, e os povos morrem,
E, amontoados, divas flechas insistiam
Contra a ampla armada Aquéia, e a nós então o vate
Aponta atento o que deseja o Fere-Longe.
Que se aplacasse então o deus logo exortei.
Do Atrida, enfim, a ira se apossa, e bruto eleva-se,
E trama nos contou que por fim se completa,
E em nau veloz Aqueus de olhos vivazes levam-na,
E a Crisa vão, e ao rei de lá levam presentes.
Da tenda agora saem arautos a levar
A que me deram os Aqueus, filha de Brises.
Mas tu, se podes, pelo filho teu implora.
Indo ao Olimpo pede a Zeus se algum respeito
Ao peito dele infundes pela fala ou gesto.
Não raro ao paço de meu pai te ouvi a louvares-te
De que ao nubícogo Cronida foste a única
Entre os deuses capaz de lhe afastar de um mal,
Quando em motim quiseram amarrá-lo Olímpios
Deuses, Hera e Posêidon e Palas Atena.
Chegando a ele dos grilhões o livras, deusa,
Breve a chamares para o Olimpo o Centimano

Que os deuses Briaréu chamam, e Egeu os homens
E em robustez ao próprio pai submeteu.
E grato à glória, junto a Zeus ele assentou-se,
E não o ataram, por temor, os venturosos,
Senta ao pé dele, a mão no joelho põe, e lembra-lhe
Que assim quisesse aos Tróicos então ajudar,
E contra águas e popas comprimir Aqueus,
Mortos, que honrassem ao líder que outrora fora,
E que, com isso, o Atrida Agamenon reinante
Sentisse entre os Aqueus traído haver ao máximo”.
Tétis responde-lhe depois a verter lágrimas:
“Por que, parida em luto, eu te nutri, meu filho?
Ao pé das naus pudesses tu salvo e sem pranto
Estar! Curto é teu fado, e mui longe não vai
Fugaz e triste enfim e em tudo és mais que todos,
Pois má fortuna foi gerar-te em meus palácios!
E a fim que tudo eu diga a Zeus que inflama os raios,
Vou-me às névoas do Olimpo, quiçá o dobrarei.
Porém, tu, junto das naus ligeiras assentado,
Odeia Aqueus sim, porém abomina a guerra.
Ao Oceano e aos cândidos etíopes Zeus
Partido é para festas, vão todos os deuses.
De volta aqui estará no Olimpo em doze dias.
Só então ao êneo lar de Zeus me abalarei,
Dos joelhos vou pegá-lo, acho que irá suadir-se”.
Assim falando, foi-se, o filho ali deixou,
Na alma a remoer a jovem de cintura bela,
Que lha tomado haviam por violência. Voga
Ulisses até Crisa com santa hecatombe.
E ao multifundo porto quando se acercaram
Dobram as velas, que aninharam na nau negra.
Ao cavalete o mastro abaixam com as cordas,
Com cuidado e com remos até o porto vão,
E as âncoras atiram, e ajustam amarras,
E enfim ao rio do mar de fato eles desceram,
E ao fere-longe Apolo abaixam a hecatombe,
Criseida sai por fim fora da nau remeira,

Que Ulisses multimanhas leva para o altar.
Às mãos do velho vate a entrega e vai dizendo:
“Crises! Mandou-me Agamenon, rei dos varões,
Trazer-te a moça, e a Febo uma santa hecatombe
De sagração a Aqueus, a fim se acalme Apolo,
Que ora os Argeus maltrata com sanhudos males”.
Falou, lha entrega às mãos, ele com gosto aceita
A cara filha, e ao deus lauta hecatombe dão,
Bem ordenada e em torno ao bem lavrado altar.
Lavam-se as mãos, farinha santa então pegaram,
Alto lhes rezou Crises, de palmas ao alto:
“Escuta-me, ó de argênteas flechas, rei de Crisa,
E Cila sacra e que com pulso és rei de Tênedos!
Como infalível tu atendeste a meu orar,
E assim me honraste, quando Aqueus forte feriste,
Agora cumpre uma vez mais o que te rogo!
Afasta a praga amarga dos Aqueus agora!”,
Devoto assim falou, e ouviu-o Febo Apolo.
Após rezarem e espalharem grãos sagrados,
O gado isolam já, depelam e degolam,
E as coxas que cortando estão cobrem de banha,
Duas vezes carnes cruas por cima puseram,
E em lenha coze o velho, e o negro vinho em cima
Jorram, quinquidentadas brochas têm os jovens.
Já assadas todas coxas, e, partes provadas,
Cortam o resto que em espetos enfiaram,
Com jeito cozem mais, retiram tudo ao fogo.
E findo esse lavor, para o festim se aprumam,
E a pronta a refeição magnânima, comeram.
Saciada a gula de comer e de beber,
Jovens vão coroando com vinho as crateras,
E feita a libação dos copos, servem todos.
Em cantos dia inteiro ao deus vão acalmando,
O que acatou no peito o Fere-Longe, alegra-se.
Quando descamba o sol, porém, e vem a treva,
Junto aos cabos da nau todos ferram no sono,
E à matutina luz da dedirrósea aurora,

Abalam-se todos Aqueus para a ampla armada,
Pois fere-longe Apolo bom vento soprava-lhes.
O mastro então aprestam, já soltam as velas.
Enfuna o vento a vela ao meio, e em torno à espuma.
A quilha rubro-forte chia, a capitânea
E ao rés da espuma cirze então a sua vereda.
Porém, dos Dânaos quando atingem o amplo campo,
E à praia a negra nau depõem, e põem os caibros
Sobre areias, em cima deles a nau fica.
Some-se cada qual entre tendas e naus.
Urra, no entanto, ao pé das breves naus, o herói
Pelida, o de ligeiros pés, o denodado,
Que em varonis enleios nem era mais visto,
Nem por lutas ansiava, o peito só queimava-lhe.
Lá a desdenhar a guerra e seus furores deixa-se.
Mas quando enfim aflora a aurora duodécima,
Os seres que são sempre para o Olimpo voam,
Seu guia é Zeus, e dos reclamos não se olvida
Do filho: ela da vaga irrompe do Oceano,
Rumo do Olimpo azul, e azula matutina,
E o amplo soante Crônio entre os demais se assenta
Ao sumo cimo Olímpio de cumes inúmeros.
Juntou-se a ele ela, os joelhos lhe prendeu
Com a sinistra, a destra pega-lhe na barba,
E para o sumo Zeus Cronida ansiosa fala:
“Zeus Pai, se um dia entre imortais eu te vali,
Com gesto ou fala, concretiza ora meu voto:
Honra a meu filho, que mais sofre que os demais,
Pois quem o fere é Agamenon, líder de povos,
Que de seus dons se vale e os pega ele em pessoa.
Portanto, vinga-o, prudente Zeus Olímpio,
E força dá aos Troianos para que os Aqueus
Meu filho reconheçam no honor que lhe cabe”,
Disse, mas nada Zeus retruca o Junta-Nuvens,
E então ela aos joelhos com a mão o apalpa,
E agora neles se apoiando implora sôfrega:

“Deveras me promete e dá-me, ó Zeus, um sim
Ou não, pois não estás em minha pele. Sabe
Com isso o quanto menos do que os outros sou”.
E suspirante o Junta-Nuvens respondeu-lhe:
“Lavra penosa é Hera enfrentar, dar-te o que pedes,
Quando Hera me incitar com palavrões bravios,
E sem razão, pois sempre entre os divinos deuses,
Ela me diz que à luta eu favoreço aos Tróicos.
Mas, eia, volta à via e que Hera não te veja,
Que disso te dou conta se puder cumpri-lo.
Espera até um sinal com a cabeça eu dar-te,
Pois entre os divinais este é de mim o máximo
Sinal, que atrás não volta, e é infenso aos enganos”.
Fez dos cílios azuis o Crônio seu sinal,
E nisto se lhe ascendem-se melenas de ambrósia,
Da imortal fronte a balançar Olimpo inteiro.
E assim de acordo separaram-se, ela após,
No mar profundo, desde o Olimpo mergulhou,
Zeus a seu paço torna, e os deuses levantaram-se
Do assento, ante o grão Pai, ninguém ousou
Guardar lugar, mas adiante acorrem todos.
No trono seu sentou, e nem Hera ao revê-lo
Ignorou que ao senso Tétis lhe falara,
Deusa argentípoda, filha do deus do mar.
E a Zeus Cronida amargos termos ela disse:
“Doloso, qual dos deuses parecer pediu-te?
Pois quando estás longe de mim te é grato sempre
Palrar segredos penseroso, e nem a mim
Da fala que tu ocultas queres que eu me informe”.
E lhe responde o pai dos homens e divinos:
“Hera, não queiras saber todos meus enredos,
Pois, mesmo esposa, eles difíceis te serão.
Se algum for para ouvires, ninguém mais, deus seja,
Ou seja homem – por primeiro o saberá.
Deste, que sem intromissões quero entender,
Nada me peças, nem por partes me especules”.

Diz-lhe depois olho de boi Hera Senhora:
“Que sermão vociferas, ó bravio Cronida!
Em tua presença há muito estou, não peço ou forço,
Porque só pensas nas coisas que te interessam,
Temo que os sensos ora não te vá roubar
Tétis de pés de prata, e filha do ancião
Do mar, que ao lado se te assenta e pega os joelhos.
Creio um sinal lhe deste: como honrar Aquiles,
E aniquilar muitos Aqueus ao pé das naus”.
E em troco respondeu-lhe o Junta-Nuvens Zeus:
“Demônio, tu ousas sempre, de ti não me escapo.
Mas nada mais podes fazer do que afastar-te
De meu ser, e bem pior, enfim, te será isso.
Se as coisas são assim, melhor é favoreças-me.
Senta tu em paz, e então atenta à minha fala.
Os deuses que há no Olimpo não te servirão,
Se antes eu chego e as mãos eu te puser invictas”.
Falou, tremeu Hera senhora de olhos táureos.
E a reprimir o caro peito sentou muda.
No lar de Zeus, porém, grunhiram os Urânidas.
Aos quais Hefesto artífice pôs-se a falar,
Louvando a cara mãe, Hera de brancos braços:
“Obras da peste serão tais, e, aliás, abjetas,
Se aqui por causa dos mortais ambos brigais.
Clamor levais aos imortais, nem festa nobre
A nós não trará gosto, caso vença o pior
À minha mãe, mesmo que o saiba, eu aconselho
A Zeus procure, o caro Pai, caso contrário,
O festim nosso ele derruba, se irritado.
Caso quiser o Olímpio que comanda o raio
Apear-nos do poder, mais forte ele é que todos.
Mas busque tu rendê-lo com ternas palavras
Que assim e para nós o Olímpio será suave”,
Falou, e ao elevar a taça de ambas alças,
A pôs na mão da mãe, e assim se pronunciou:
“Ousa, mãe minha, e persevera, ainda ferida,
Que estes olhos não te vejam, cara embora,

Assim dele ferida, e em mágoa não poder-te
Eu ser mais útil, triste é convencer o Olímpio.
Pois de outra feita a mim, tentando repulsá-lo
Longe do umbral do céu jogou-me pelos pés.
Errei o dia inteiro, e com o sol cadente
Em Lemnos tombei, pouco ar então sobrava-me;
E mal caído, os Síntios então me trataram”.
Assim disse ele, e Hera de alvos braços ri-se,
E rindo a taça da mão filial pegou
E a todos outros deuses, pois, então sua destra
O néctar serviu doce da cratera escoante,
E entre os sublimes deuses brota um riso súbito,
No paço ao verem-no mancar, ao deus Hefesto.
E o dia inteiro comem até pôr-se o sol
E o peito não sentiu algo faltasse à mesa,
Nem cítara formosa, a que Apolo regia,
Nem Musas a entoar responsos da voz bela.
Depois que, enfim, tombou a luz clara do sol,
Já sonilúndios cada um vai para o lar,
Que em cada parte o destro e glorioso Hefesto
Arquitetara bem com suas soluções lúcidas.
Foi para a cama Zeus, o clareador Olímpico,
E ali repousa até que o sono doce vier.
E ali dormiu em cima, Hera auritrônia ao lado.

Fonte: Revista USP, n.75, São Paulo, Setembro - novembro de 2007.

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