terça-feira, outubro 31, 2023

Cecília Meireles - Epigrama nº 7

 A tua raça de aventura
quis ter a terra, o céu, o mar.

Na minha, há uma delícia obscura
em não querer, em não ganhar…

A tua raça quer partir,
guerrear, sofrer, vencer, voltar.

A minha, não quer ir nem vir.
A minha raça quer passar.

in: Viagem (1939)

Drummond: A Bruxa

Nesta cidade do Rio,
 de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
 estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
 anunciou vida ao meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto…
Precisava de um amigo,
 desses calados, distantes,
 que leem verso de Horácio
 mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
 Estou só, não tenho amigo,
 e a essa hora tardia
 como procurar amigo?

E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse nesse minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
 até que venha a manhã
 trazer leite, jornal e calma.
 Porém a essa hora vazia
 como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me
o que há é apenas a noite
 e uma espantosa solidão.

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.

in: José [1942].Carlos Drummond de Andrade, Nova Reunião - 23 livros de Poesia. São Paulo: Companhhia das Letras, 2015. 

Drummond: Aparição Amorosa

 Doce fantasma, por que me visitas

como em outros tempos nossos corpos se visitavam?

Tua transparência roça-me a pele, convida

a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca

um beijo recebeu de rosto consumido.


Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,

mesma voz, mesmo timbre,

mesmas leves sílabas,

e aquele mesmo longo arquejo

em que te esvaías de prazer,

e nosso final descanso de camurça.


Então, convicto,

ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve

e continua existindo, puro som.

Aperto...o quê? A massa de ar em que te converteste

e beijo, beijo intensamente o nada.


Amado ser destruído, por que voltas

e és tão real assim ilusório?

Já nem distingo mais se és sombra

ou sombra sempre foste, e nossa história

invenção de livro soletrado

sob pestanas sonolentas.

Terei um dia conhecido

teu vero corpo como hoje o sei

de enlaçar o vapor como se enlaça

uma ideia platônica no espaço? 


O desejo perdura em ti que já não és,

querida ausente, a perseguir-me, suave?

Nunca pensei que os mortos 

o mesmo ardor tivessem de outros dias

e no-lo transmitissem com chupadas

de fogo aceso e gelo matizados.


Tua visita ardente me consola.

Tua visita ardente me desola.

Tua visita, apenas uma esmola. 


in: Farewell [1996] Carlos Drummond de Andrade, Nova Reunião - 23 livros de Poesia. São Paulo: Companhhia das Letras, 2015. 

A uma passante (Baudelaire) - Trad. Tina Muniz Nogueira


 Uivava em desordem a rua em meu entorno.

Alta e discreta, e em luto - a dor majestosa - ,

Uma moça passou, com sua mão pomposa

Solevando da veste a bainha e abanando o orno;


Ágil era, embora a perna um mármore muso.

Já eu bebia -- fito feito um vagabundo 

Em céu-olho seu, terra azulada do tornado --, 

Um doce fascinante e o falecer gostoso.


Que luz...e então, fez-se breu! Ó, beldade fugaz,

Com cujo olhar fez-me renascido de vez, 

Te verei apenas na eternidade e não mais?


Alhures, a léguas daqui - ou nunca, talvez!

Pois pouco sei onde fostes, e tu também, creio.

Ai, o meu amar-te -- cujo sabíeis, em teu seio! 


La rue assourdissante autour de moi hurlait. 
 Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse, 
 Une femme passa, d’une main fastueuse
 Soulevant, balançant le feston et l’ourlet ; ​

 Agile et noble, avec sa jambe de statue. 
 Moi, je buvais, crispé comme un extravagant, 
 Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan, 
 La douceur qui fascine et le plaisir qui tue. ​

 Un éclair … puis la nuit ! – Fugitive beauté 
 Dont le regard m’a fait soudainement renaître,
 Ne te verrai-je plus que dans l’éternité ?

 ​Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! jamais peut-être ! 
 Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, 
 O toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais ! ​

domingo, outubro 29, 2023

Sobre a Medusa de Leonardo da Vinci numa Galeria Florentina (Shelley) - Tradução de Paulo Martins

A Medusa de Caravaggio (c.1597), que, diz-se, teria sido inspirada na homônima pintura perdida de Leonardo da Vinci. 

 Olhando para o céu da noite, jaz
Inerte sobre o gris topo dum monte,
Baixo vê-se distante terra trêmula.
Seu horror, seu encanto são divinos.
Sobre seus lábios e pálpebras jazem 
Beleza como a sombra donde brilham 
Quentes e cruéis, no fundo lutando,
As agonias da angústia e da morte.

Agora, menos horror do que graça
Que torna em pedra a alma do olhar;
Onde o delinear da face morta
Está gravado até que nela a forma 
Cresça e nada a mente possa trilhar;
é a música do encanto lançada
contra às trevas e ao esplendor da dor,
que humaniza e harmoniza a tensão.

De sua cabeça, como corpo único,
Brotam qual vergéis de úmida pedra, 
Víperas cabeleiras que ora torcem, 
Ora se esticam em seu maranhado
Preso e exposto com nós infinitos,
Radia da malha como que zombou, 
Por dentro a tortura, a morte, e viu
o sólido ar com bocas disformes.

Perto em lapa, um sardão peçonhento
Olha ocioso nos olhos gorgôneos,
Enquanto no ar medonho morcego,
sem rumo, voa contra uma caverna
com louco susto que a luz espantosa 
fendeu. Ele vem rápido tal traça
atrás da vela. Céu da meia-noite
brilha com luz mais terrível que o breu.

É o revolto encanto do terror:
Das serpentes fulge um brônzeo olhar,
Aceso nesse enredado errar,
Cria um fogo-fátuo emocionante,
Rompe um eterno espelho de toda a
Beleza e de todo o terror de lá – 
Face de mulher de vípera crina,
Das rochas úmidas no céu vê a morte.

It lieth, gazing on the midnight sky,
Upon the cloudy mountain peak supine;
 Below, far lands are seen tremblingly;
 Its horror and its beauty are divine.
Upon its lips and eyelids seems to lie
 Loveliness like a shadow, from which shine,
Fiery and lurid, struggling underneath,
 The agonies of anguish and of death. 

 Yet it is less the horror than the grace
Which turns the gazer's spirit into stone;
Whereon the lineaments of that dead face
Are graven, till the characters be grown
Into itself, and thought no more can trace;
'Tis the melodious hue of beauty thrown
Athwart the darkness and the glare of pain,
Which humanize and harmonize the strain.

 And from its head as from one body grow,
As [ ] grass out of a watery rock,
 Hairs which are vipers, and they curl and flow
And their long tangles in each other lock,
And with unending involutions shew
Their mailed radiance, as it were to mock
The torture and the death within, and saw
The solid air with many a ragged jaw.

And from a stone beside, a poisonous eft.
Peeps idly into those Gorgonian eyes;
Whilst in the air a ghastly bat, bereft
Of sense, has flitted with a mad surprise
Out of the cave this hideous light had cleft,
And he comes hastening like a moth that hies
After a taper; and the midnight sky
Flares, a light more dread than obscurity.

'Tis the tempestuous loveliness of terror;
For from the serpents gleams a brazen glare
Kindled by that inextricable error,
Which makes a thrilling vapour of the air
Become a [ ] and ever-shifting mirror
Of all the beauty and the terror there-
A woman's countenance, with serpent locks,
Gazing in death on heaven from those wet rocks.


Percy Bysse Shelley (1792- 1822) 
Tradução de Paulo Martins

sexta-feira, outubro 27, 2023

35 Proêmios da Eneida e mais um pouco (por Beethoven Alvarez)

 Beethoven Alvarez (UFF)

 

Fuga di Enea da Troia. Frederico Barocci. 1598

Tento aqui reunir a mais completa possível coleção de traduções para o português do proêmio da Eneida de Virgílio, ou seja, dos versos 1-11 em que se encontram a proposição temática e invocação às musas. Primeiro, faço uma coletânea de informações sobre as traduções disponíveis na forma de uma lista (as integrais em verso, as integrais em prosa e depois as avulsas que incluem os versos iniciais) e, em seguida, apresento a transcrição dos proêmios dessas traduções (que datam de 1638 a 2023). No final, acrescento notícias, trechos e imagens de adaptações variadas.

quinta-feira, outubro 26, 2023

Balanços - II

 Antídoto contra a vida 

e sua graça nefasta:

fugir de todo desejo,

buscar a alegria casta


das abstrações que ostentam

porte másculo e maiúsculo,

que explicam todo o universo

e cabem num magro opúsculo.


Paulo Henriques Britto. Tarde. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 

sexta-feira, outubro 13, 2023

Paladas de Alexandria - Antologia Grega 9.72 e 9.169

 De Paladas de Alexandria nos restaram aproximadamente 151 epigramas na Antologia Grega. Estabelece-se seu período de atuação no século IV d.C. Sua poesia mostra a figura de um professor de letras (grammatistés) resignado, o último dos pagãos numa cidade cristã.

Traduções: Rafael Brunhara

quinta-feira, outubro 12, 2023

O Mapa - Mário Quintana


O mapa 

 Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(E nem que fosse o meu corpo!)

 Sinto uma dor infinita
 Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

 Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...

Quando eu for, um dia desses,
 Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
 Serei um pouco do nada
 Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
 Suave mistério amoroso,
 Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

quarta-feira, outubro 11, 2023

Alceu da Messênia - Epigramas

 Alceu da Messênia atuou entre 219 e 198 a.C., durante o reinado de Filipe V da Macedônia sobre a Grécia. Dele nos restaram diversos poemas de ataque a Filipe, o que nos permite datar sua obra com relativa precisão. Mas dos 22 epigramas que nos restaram, parte considerável é de natureza erótica. Segundo o célebre filólogo alemão Ulrich von Wilamowitz-Moellendorf, Alceu representava o último poeta helenístico a demonstrar uma verdadeira originalidade. O poeta Meleagro de Gádara (séc I d.C.) diz que Alceu é um "jacinto falador": o jacinto, entendido pelos gregos com uma flor que simbolizava a dor, poderia ser uma alusão aos poemas políticos contra Filipe, que relevam um tom melancólico. Entretanto, como seus poemas são muito mais diversos do que isso, talvez a comparação seja apenas fortuita. 


Traduções: Rafael Brunhara

sexta-feira, outubro 06, 2023

Paulo Silenciário - Epigramas Eróticos

 *Paulo Silenciário (575 d.C ou 585 d.C.) foi um poeta grego de Constantinopla. Compôs entre outros epigramas, uma écfrase da igreja de Hagia Sofia. Mas sua obra é mais conhecida por seus poemas eróticos, cerca de oitenta, que foram conservados pela Antologia Palatina.

Traduções: Rafael Brunhara

quinta-feira, outubro 05, 2023

Madrigal - Paulo Henriques Britto

Desista: não vai dar certo.
O mundo é o mesmo de sempre,
desejo é uma coisa cega.
Desista, enquanto é tempo.

As mãos não sabem o que pegam,
os pés vão aonde não sabem.
As cartas estão marcadas:
vai dar desgraça na certa.

O mundo é sempre a esmo,
desejo é uma porta aberta.
Desista, que a vida é incerta.
Ou insista. Dá no mesmo.

in Paulo Henriques Britto. Formas do Nada. São Paulo: Cia das Letras, 2012. 

domingo, outubro 01, 2023

Iniciação - Fernando Pessoa

Não dormes sob os ciprestes, 
 Pois não há sono no mundo. 

 ...... 

 O corpo é a sombra das vestes 
 Que encobrem teu ser profundo. 

 Vem a noite, que é a morte 
 E a sombra acabou sem ser. 
 Vais na noite só recorte,
 Igual a ti sem querer. 

 Mas na Estalagem do Assombro 
 Tiram-te os Anjos a capa. 
 Segues sem capa no ombro, 
 Com o pouco que te tapa. 

 Então Arcanjos da Estrada
 Despem-te e deixam-te nu. 
 Não tens vestes, não tens nada:
 Tens só teu corpo, que és tu. 

 Por fim, na funda caverna, 
 Os Deuses despem-te mais. 
 Teu corpo cessa, alma externa, 
 Mas vês que são teus iguais. 

 ......

 A sombra das tuas vestes
 Ficou entre nós na Sorte.

 Não estás morto, entre ciprestes.

 ...... 

 Neófito, não há morte.