quis ter a terra, o céu, o mar.
Na minha, há uma delícia obscura
em não querer, em não ganhar…
A tua raça quer partir,
guerrear, sofrer, vencer, voltar.
A minha, não quer ir nem vir.
A minha raça quer passar.
Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.
Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.
Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto...o quê? A massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada.
Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.
Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma ideia platônica no espaço?
O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.
Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.
in: Farewell [1996] Carlos Drummond de Andrade, Nova Reunião - 23 livros de Poesia. São Paulo: Companhhia das Letras, 2015.
Uivava em desordem a rua em meu entorno.
Alta e discreta, e em luto - a dor majestosa - ,
Uma moça passou, com sua mão pomposa
Solevando da veste a bainha e abanando o orno;
Ágil era, embora a perna um mármore muso.
Já eu bebia -- fito feito um vagabundo
Em céu-olho seu, terra azulada do tornado --,
Um doce fascinante e o falecer gostoso.
Que luz...e então, fez-se breu! Ó, beldade fugaz,
Com cujo olhar fez-me renascido de vez,
Te verei apenas na eternidade e não mais?
Alhures, a léguas daqui - ou nunca, talvez!
Pois pouco sei onde fostes, e tu também, creio.
Ai, o meu amar-te -- cujo sabíeis, em teu seio!
A Medusa de Caravaggio (c.1597), que, diz-se, teria sido inspirada na homônima pintura perdida de Leonardo da Vinci. |
Beethoven Alvarez (UFF)
Fuga di Enea da Troia. Frederico Barocci. 1598 |
Tento aqui reunir a mais completa possível coleção de traduções para o português do proêmio da Eneida de Virgílio, ou seja, dos versos 1-11 em que se encontram a proposição temática e invocação às musas. Primeiro, faço uma coletânea de informações sobre as traduções disponíveis na forma de uma lista (as integrais em verso, as integrais em prosa e depois as avulsas que incluem os versos iniciais) e, em seguida, apresento a transcrição dos proêmios dessas traduções (que datam de 1638 a 2023). No final, acrescento notícias, trechos e imagens de adaptações variadas.
Antídoto contra a vida
e sua graça nefasta:
fugir de todo desejo,
buscar a alegria casta
das abstrações que ostentam
porte másculo e maiúsculo,
que explicam todo o universo
e cabem num magro opúsculo.
Paulo Henriques Britto. Tarde. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
De Paladas de Alexandria nos restaram aproximadamente 151 epigramas na Antologia Grega. Estabelece-se seu período de atuação no século IV d.C. Sua poesia mostra a figura de um professor de letras (grammatistés) resignado, o último dos pagãos numa cidade cristã.
Traduções: Rafael Brunhara
Alceu da Messênia atuou entre 219 e 198 a.C., durante o reinado de Filipe V da Macedônia sobre a Grécia. Dele nos restaram diversos poemas de ataque a Filipe, o que nos permite datar sua obra com relativa precisão. Mas dos 22 epigramas que nos restaram, parte considerável é de natureza erótica. Segundo o célebre filólogo alemão Ulrich von Wilamowitz-Moellendorf, Alceu representava o último poeta helenístico a demonstrar uma verdadeira originalidade. O poeta Meleagro de Gádara (séc I d.C.) diz que Alceu é um "jacinto falador": o jacinto, entendido pelos gregos com uma flor que simbolizava a dor, poderia ser uma alusão aos poemas políticos contra Filipe, que relevam um tom melancólico. Entretanto, como seus poemas são muito mais diversos do que isso, talvez a comparação seja apenas fortuita.
Traduções: Rafael Brunhara
Traduções: Rafael Brunhara