terça-feira, outubro 31, 2023

Drummond: Aparição Amorosa

 Doce fantasma, por que me visitas

como em outros tempos nossos corpos se visitavam?

Tua transparência roça-me a pele, convida

a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca

um beijo recebeu de rosto consumido.


Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,

mesma voz, mesmo timbre,

mesmas leves sílabas,

e aquele mesmo longo arquejo

em que te esvaías de prazer,

e nosso final descanso de camurça.


Então, convicto,

ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve

e continua existindo, puro som.

Aperto...o quê? A massa de ar em que te converteste

e beijo, beijo intensamente o nada.


Amado ser destruído, por que voltas

e és tão real assim ilusório?

Já nem distingo mais se és sombra

ou sombra sempre foste, e nossa história

invenção de livro soletrado

sob pestanas sonolentas.

Terei um dia conhecido

teu vero corpo como hoje o sei

de enlaçar o vapor como se enlaça

uma ideia platônica no espaço? 


O desejo perdura em ti que já não és,

querida ausente, a perseguir-me, suave?

Nunca pensei que os mortos 

o mesmo ardor tivessem de outros dias

e no-lo transmitissem com chupadas

de fogo aceso e gelo matizados.


Tua visita ardente me consola.

Tua visita ardente me desola.

Tua visita, apenas uma esmola. 


in: Farewell [1996] Carlos Drummond de Andrade, Nova Reunião - 23 livros de Poesia. São Paulo: Companhhia das Letras, 2015. 

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