sexta-feira, março 28, 2008

Píndaro - Primeira Ode Pítica

Khryséa phórmincs

Lira de ouro, bem comum
de Apolo e das Musas de trança violeta:
os passos de dança, princípio de júbilo,
te escutam, os aedos
obedecem teu sinal
quando pulsas vibrada os primeiros compassos
dos prelúdios condutores de coros.
Consegues apagar o pontiagudo raio
de fogo semprefluente. Sobre o cetro de Zeus
adormece a águia,
que recolhe de um flanco e de outro suas asas rápidas,
rainha dos pássaros.
Toldas sua cabeça em gancho de uma névoa escura,
doce claustro das pálpebras; possuídas por teus sons
ela crispa no sono o dorso flexível.
E mesmo o violento Ares
rejeitando a rudeza das armas
arrefece o coração que dorme. Sábios,
teus dardos aplacam o íntimo da alma dos deuses
por arte do filho de Latona
e das Musas vestidas de dobras sinuosas.

Porém todos os que Zeus desamou
estremecem ouvindo o clamor
sonoro das Piérides
na terra ou no mar indomável.
Assim aos deuses adverso
Tífon o de cem-testas
jaz, no terrível Tártaro.
Nutriu-o outrora a cilícia
gruta polinome
e agora as escarpas que o mar rebatem
sobre Cumas
e a Sicília
esmagam-lhe o peito de saliente felpa.
O Etna, todo neve, nutriz dos gelos cortantes,
pilar do céu,
o detém.

Fontes de um fogo inacessível
puríssimas rebentam-lhe
da mais interna entranha.
E rios de dia vazam
abrasadas torrentes de fumaça.
E púrpura na treva
uma chama rolando
repulsa ao mar profundo
um tumulto de pedras.
O monstro ali está. Ele é quem jorra
os fachos de Hefesto, aterradores.
Prodígio de se ver. Prodígio ainda
senão de ver, de ouvir de quem já viu.
Assim no Etna entre o píncaro
(folhas negras) e o plaino
preso
ele jaz,
numa cama de pontas
descarnando as costas contrapostas.
Dá-nos, Zeus, a graça de agradarmos
a ti, dominador dessa montanha
fronte e frente de uma terra fértil:
a cidade vizinha um fundador ilustre
ilustrou-a em seu nome
e o arauto o proclamou na arena pítica
celebrando Híeron na corrida de carros
belo de vitória.
Ao navegante principiando a viagem
primeiro prêmio é um vento favorável
que ao cabo prenuncia um propício retorno.
Pensar no que passou promete a esta cidade
por igual um porvir glorioso de corcéis
e coroas de festa
e um nome renomeado em canoros triunfos.
Dono de Lícia e Delos, Febo,
amador da castália fonte do Parnaso,
que este augúrio te agrade e faças desta terra
um solo fértil de heróis.

Da máquina dos deuses
procedem as virtudes dos mortais:
ciência, vigor dos pulsos, fala fácil, tudo
eles engendram.
Meditando o louvor deste herói,
espero não lançar fora da liça
o dardo de brônzeo topo suspenso em minha mão,
mas no extenso arremesso ultrapassar os meus contrários.
Que o restante do tempo lhe promova
um próspero porvir, o pleno dom dos bens
e o olvido das penas.
Ele há de rever-se nas batalhas
- coração de coragem - resistindo,
e pela mão dos deuses vencedor.
Heleno algum colheu igual seara,
orgulhosa coroa de conquistas.
Agora segue o exemplo a Filoctetes
quando se lança à luta. No nó do necessário,
mesmo o soberbo suplica o seu favor.

Quase-deuses heróis (dizem) a Lemnos
vieram e levaram o filho de Póias,
o arqueiro, que uma chaga afligia.
E ele destruiu a cidade de Príamo,
pôs um fim aos trabalhos dos Dânaos:
o destino movia-lhe os membros malseguros.
Assim a divindade
dirija reto Híeron
pelos dias que avançam passo lento,
sempre a tempo lhe dando o que mais queira.
Atende, Musa, e junto a Dinomedes
vem celebrar a esplêndida quadriga
no prêmio de vitória.
Que não se alheia o filho ao júbilo paterno.
Vem, inventa comigo
um canto caro ao soberano de Etna.

Para ele Híeron fundou esta cidade
seguindo à risca os preceitos de Hilos,
com liberdade, divino edifício.
Dorianos,
os descendentes de Pânfilo,
e também os da estirpe de Hércules,
que habitam junto às penhas do Taígeto,
querem preservar perenes os princípios de Egímios.
Levantando-se do Pindo,
afortunados tomaram Amiclas,
agora - profundos de glória -
vizinhos dos Tindáridas de cavalos brancos.
E floresceu a fama da ponta de suas lanças!
Zeus,
perfazedor!
Junto às águas do Amenas,
que a palavra dos homens para sempre assegure
aos cidadãos e aos reis um tão nobre destino.
Com teu respaldo o príncipe
seguido pelo filho
na honra dirija o povo para a concorde paz.
Filho de Cronos,
eu te peço um aceno de cabeça:
aprova que o Fenício se aplaque em sua morada,
contém o alarido de guerra do Tírseno,
Lamentando navios por seu desplante,
eles revêem o infortúnio de Cumas.
Que revés!
Do alto dos navios de proa rápida,
seus jovens eram jogados ao mar,
domados pelo senhor de Siracusa
que redimia Hélade da servidão mais dura.
Meu salário será por Salamina
a glória dos Atenienses;
em Esparta cantarei a batalha de Citéron,
derrota para os Medas de arcos recurvos;
mas à margem do Hímera de águas copiosas
cumpro meu hino aos filhos de Dinomedes,
prêmio por seu valor
quando bateram o inimigo.

Se falas o justo no momento justo
e tens as cordas do muito retensas na curva do breve,
a censura dos homens pouco te persegue.
O tédio saciado embota a ávida espera.
No ouvido de cada um,
no coração calado,
pesa a demasia da ventura alheia.
Preferível porém o ciúme à compaixão:
por isso não te detenhas no curso do que é belo.
Preciso no leme, governa o povo,
forjando na bigorna da verdade uma linguagem de bronze.
Uma frívola faísca de nada
avulta, vinda de ti.
Árbitro de muitos, muitos,
- no bem ou no mal -
atestam fiéis os teus atos.

Guarda em beleza a flor do teu caráter.
Se amas sempre ouvir o que é doce de ouvir
não te canses de ser generoso:
como o bom piloto, livra a vela ao vento.
Amigo, não te iluda a isca do lucro fácil.
Aos oradores e poetas
somente o renome além-morte ressoando
revela os fatos dos que foram.
Cresus, alma aberta, não perece.
Mas Fálaris, coração cruel,
torrava suas vítimas no búfalo de cobre;
por toda a parte o ódio cerca sua memória.
Nenhuma lira sob os telhados
nenhuma o recorda,
para o suave acorde das vozes de crianças.
Primeiro bem: boa fortuna.
Segundo: bom nome.
O homem que a ambos recolhe,
colhe a suprema guirlanda.

Haroldo de Campos

quarta-feira, março 26, 2008

Teógnis: A melhor coisa

A melhor coisa
seria não nascer aqui no mundo,
nem contemplar jamais a luz do sol.
Se alguém nasceu, porém, melhor que viaje
para as portas da Morte, a toda pressa,
e estreitamente envolto pela terra
descanse em paz.

Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos

Estesícoro - O Hiperiônide Sol

O Hiperiônide Sol
desceu o Oceano em sua taça de ouro
para alcançar as negras profundezas
da sagrada noite,
e para ir ter com a mãe,
com a legítima esposa e os caros filhos.
O outro, o filho de Zeus, a pé se dirigiu
para a sombra do bosque de loureiros.

Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos

Teógnis - Do Amor

Jovens, dormi com as moças
de vossa idade, e desfrutai
de labor e delícias amorosas.
Que no banquete soem flauta e canto.
Para homem e mulher, que há de mais sábio?
De que me valem honras e riqueza?
O prazer e a alegria a tudo excedem.
....................................
O amor é amargo e doce, encantador e cruel,
enquanto, ó Cirno, os jovens o pretendem:
doce é alcançá-lo,
mas triste é procurá-lo e não o achar.

Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos.

Teógnis - "Meu coração, mantém-te jovem"

Meu coração, mantém-te jovem!
Outros homens virão,
e morto eu me farei
apenas terra negra
..................
Mocidade e velhice lamentemos:
uma porque se vai, e porque chega a outra.
..........................................
Coisa insensata é lastimar os mortos,
insensata e pueril,
se a flor da mocidade não choramos...

Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos

Álcman - Noite

Dormem os píncaros e os precípicios
os promontórios e os desfiladeiros,
e todo gênero de répteis
alimentados pela terra negra,
dormem as feras das montanhas
e o povo das abelhas,
dormem os monstros nos abismos
do mar de púrpura:
e dorme a tribo inteira
dos pássaros de longas asas.

Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos

terça-feira, março 25, 2008

Álcman Fr.1 PMG - Partênio

É um castigo que vem dos deuses.
Feliz aquele que sem lágrimas
tece alegre o seu dia. Eu canto
a luz de Ágido: vejo essa luz,
clara como a do sol,
que Ágido está invocando
para que brilhe sobre nós.
Todavia não a posso louvar
nem censurar sem ofensa
a ilustre guia do coro,
que sobressai
como em rebanho de bois
um cavalo de sonoras patas,
conquistador de prêmios, rápido
como os sonhos alados.

Não a estais vendo?
É um corredor venético;
e a cabeleira solta
de minha prima Hagesícora
brilha como ouro puro.
Quanto a seu rosto de prata,
como exprimí-lo claramente?
Esta é Hagesícora; e contudo
aquela cuja beleza
não correr após a dela,
mas depois da de Ágido,
correrá como um cavalo colasseu
junto a um corcel ibeno.
Quando levamos o véu a Ortia,
estas nossas Pombas erguem-se
para lutar por nós
em meio à noite de ambrosia,
não como aquelas Pombas celestiais
porém mais luminosas,
sim, iguais ao próprio Sírius.


Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos

Álcman Fr.26 PMG

Virgens de voz de mel
tão alta e clara,
meus membros já não podem transportar-me.
Ah quem me dera ser, ah quem me dera,
um martim-pescador,
a voar, de coração sem medo,
junto aos alcíones por sobre a flor das ondas,
o próprio pássaro da primavera,
de cor púrpurea como o mar.

Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos.

sábado, março 22, 2008

Especulações em torno da palavra homem

Mas que coisa é o homem,
que há sob o nome:
uma geografia?
um ser metafísico?
uma fábula sem
signo ou desmonte?
Como pode o homem
sentir-se a si mesmo
quando o mundo some?
Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome?
E não perder o nome
e o sal que ele come
nada lhe acrescenta
nem lhe subtrai
da doação do pai?
Como se faz um homem?
Apenas deitar,
copular, à espera
de que do abdômen
brote a flor do homem?
Como se faz
a si mesmo, antes
de fazer o homem?
Fabricar o pai
e o pai e outro pai
e um pai mais remoto
que o primeiro homem?
Quanto vale o homem?
Menos, mais que o peso?
Hoje, mais que ontem?
Vale menos, velho?
Vale menos, morto?
Menos um do que outro,
se o valor do homem
é a medida do homem?
Como morre o homem,
como começa?
Sua morte é fome
que a si mesma come?
Morre a cada passo?
Quando dorme, morre?
Quando morre, morre?
A morte do homem
consemelha a goma
que ele masca, ponche
que ele sorve, sono
que ele brinca, incerto
de estar perto, longe?
Morre, sonha o homem?
Por que morre o homem?
Campeia outra forma
de existir sem vida?
Fareja outra vida
não já repetida,
em doido horizonte?
Indaga outro homem?
Por que morte e homem
andam de mãos dadas
e são tão engraçadas
as horas do homem?
mas que coisa é o homem?
Tem medo da morte,
mata-se sem medo?
Ou medo é que o mata
com punhal de prata
laço de gravata,
pulo sobre a ponte?
Por que vive o homem?
Quem o força a isso,
prisioneiro insonte?
Como vive o homem,
se é certo que vive?
Que oculta na fronte?
E por que não conta
seu todo segredo
mesmo em tom esconso?
Por que mente o homem?
mente, mente, mente,
desesperadamente?
Por que não se cala,
se a mentira fala,
em tudo que sente?
Por que chora o homem?
Que choro compensa
o mal de ser homem?
Mas que dor é homem?
Homem como pode
descobrir que dói?
Há alma no homem?
E quem pôs na alma
algo que a destrói?
Como sabe o homem
o que é a sua alma
e o que é alma anônima?
Para que serve o homem?
para estrumar flores,
para tecer contos?
Para servir o homem?
Para criar Deus?
Sabe Deus do homem?
E sabe o demônio?
Como quer o homem
ser destino, fonte?
Que milagre é o homem?
Que sonho, que sombra?
Mas existe o homem?

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, março 21, 2008

Meleagro de Gádara

Leva-lhe esta mensagem, Dorcás; mas repete-lhe
Tudo, Dorcás, duas ou três vezes. Corre,
não te atrases, voa. Um instante, um instante, Dorcás, pára.
Por que te apressas sem antes saber de tudo?
Acrescenta ao que te disse – ou melhor (que tolice a minha!),
Não lhe digas nada – mas não – diz-lhe tudo.
Não deixes de dizer-lhe. Apesar de mandar-lhe, Dorcás,
Vou contigo eu mesmo, vê, e à tua frente.(5.182)

Tradução: José Paulo Paes

Ilíada XXII.311-366. A morte de Héctor

Assim, Héctor, brandindo o gládio agudo, investe
e Aquiles também, fúria guerreira, o acomete,
feroz, e sustém ante o peito o escudo belo,
dedáleio, fazendo o elmo tetracórnio, fúlguro,
ondular; na cimeira, as crinas de ouro, por
Hefesto esparsas, circunflutuavam. Como o astro
vespertino entre os mais astros vai, no apogeu
da noite - a estrela Vésper - no céu, a mais bela,
um resplendor assim a pontiaguda lança
de Aquiles emitia. No seu punho, à mão destra,
maquina coisas más contra Héctor e esquadrinha
no belo corpo adverso o ponto vulnerável.
Cobrem-no todo as bronzibelas armas que
do cadáver de Pátroclo arrancara; apenas
via-se a clavícula, onde aparta o ombro do colo;
ali esvai-se a psiquê, da garganta, mais célere.
Aquiles, ali, finca a lança, quando, fulo,
Héctor o investe. A ponta fura-lhe o pescoço,
mas o bronze não rompe a traquéia, nem impede-o
de se expressar, embora arrojado no pó.
Aquiles exulta: "Héctor, imbecil: a Pátroclo
despojaste das armas, crendo-te impunível,
sem medo de mim, longe da pugna; porém,
um vingador muitíssimo mais forte - eu próprio -
tinha ficado atrás, junto às naus; eu dobrei-te
os joelhos. Cães e abutres hão de estraçalhar-te;
porém os Dânaos, honras e exéquias a Pátroclo
prestarão." Quase morto, elmo-refulgente, Héctor
lhe responde: "Por teu sopro vital, por teus joelhos,
teus genitores, rogo-te: 'Não deixes cães
me domarem à beira das naus; aceita ouro
e bronze, os ricos dons que meus pais te darão.
Restitui-lhes meu corpo, para a pira fúnebre."
Olho-torvo, tornou-lhe o Peleide: "Cachorro,
não me rogues por joelhos nem por genitores.
Minha ira e meu furor são tais, que eu comeria
cruas tuas carnes, talhando-as primeiro, tão grandes
males causaste. Mas ninguém de tua cabeça
enxotará os cães! Mesmo que dez, vinte vezes,
ricos, riquíssimos resgates me trouxessem,
com promessas de mais; mesmo que a peso de ouro
quisesse o rei remir-te. Numa essa jamais
te deporá tua nobre mãe, que deu-te à luz,
para chorar-te. Cães e abutres comer-te-ão
inteiro." A morrer quase, o de elmo-flâmeo disse-lhe:
"Vendo-te e conhecendo-te, sei: persuadir-te
não é possível; tens uns coração de ferro,
um ânimo ferrenho. Cuida que eu não sirva
à vindita dos deuses, quando Apolo e Páris
te abaterem, às Portas Céias, embora bravo."
Ultimou-se-lhe a morte. Eclipsou-o. A psiquê
voou-lhe dos membros para o Hades, chorando o fado
que lhe tirou vigor e juventude. Aquiles,
ao já morto, ainda disse: "Morre! Acolherei
a Quere, quando Zeus e os numes o quiserem."

Tradução: Haroldo de Campos

quinta-feira, março 20, 2008

Píndaro - 8º Pítica

Para Aristómenes de Egina, vencedor na luta.

Serenidade, filha benévola da Justiça,
fonte da opulência urbana,
dona das chaves ilustres
em conselhos e guerras:
acolhe meu canto a Aristómenes,
vitorioso pítico.
Sabes o momento justo de propiciar o júbilo
e de prová-lo.

Mas quando alguém introduz no coração
o fel do rancor,
reages ríspida ao inimigo,
afogando a insolência no oceano turvo.
Porfírio provocou-te inadvertidamente,
cego à partilha do destino.
Quem traz da casa amiga o lucro consentido,
conquista prêmio ímpar.

Com o tempo, a violência arruína o arrogante.
Não soube evitá-la Tífon, centicéfalo cilício,
nem o rei dos gigantes;
abateu-os o raio e as flechas de Apolo,
alegre ao ver chegar de Cirra
o filho coroado de Xenarco,
folhas do Parnaso e pompa dórica.

A ilha
- cidade justa -
ganhou as cercanias das Graças,
conheceu a ilustre virtude eácida.
Desde sempre sua fama se perfaz.
Poemas repetem elogios ao berço
de seus heróis,
laureados em lutas esportivas,
conclusivos em rixas bélicas.

Entre cidadãos ela também fulgura.
Carente de ócio,
não levo a longa parlenda às cordas da lira,
nem às vozes sutis,
pois o tédio irrita os ouvintes.
Zeloso de meu débito,
o contexto preme:
teu feito mais recente, rapaz,
sobrevoe nas asas do meu engenho.

Na trilha de teus tios,
honras a glória de Teogneto, prêmio em Olímpia,
e a vitória de um corpo audaz, Clitômaco, no
Istmo.
Agigantas a família Midílida,
cumpres o dizer do filho de Ecleu,
palavras enigmáticas proferidas
quando viu na Tebas de sete portas
os filhos, ansiosos de lança.

Os Epígonos refaziam a campanha argiva.
O Ecleida pronunciou em plena guerra:
“É um feito da natura
o afã paterno brilhar nos filhos.
Vejo nítido Alcméon,
agitando o dragão cintilante
sobre o escudo rútilo,
destaque nos portais de Cadmo.

A ave de bom agouro surpreende agora Adrasto,
herói provado na expedição precedente.
Mas o revés dominará seu lar.
Na tropa dos dânaos,
só ele recolhe os ossos do filho morto.
Deuses decidem seu ingresso
pelas ruas largas de Abas,
com uma única baixa no exército.”

Calou Anfiarau.
Com igual enlevo,
guirlandas e a úmida aragem hínica
recubram Alcméon,
vizinho guardião dos meus haveres:
veio até mim
quando me dirigia ao ônfalo ínclito
- coração da terra -
e colocou-me no rol das profecias,
inatas à sua família.

Flechicerteiro,
senhor do templo ilustre,
abrigo nos vales de Pito,
cumulas de júbilo Aristómenes;
sua casa recebeu anteriormente
o prêmio almejado do pentatlo,
no âmbito de vossa festa:
dádiva tua.

Declina o olhar, Apolo,
acolhe o que traduzo em harmonia.
Dike preside a dança e o doce ritmo.
Aos deuses rogo eterno apuro
por vosso futuro, Xenarques.
Alguém atinge o píncaro sem muita fadiga
e a maioria então cogita:
é um sábio que, entre tolos,

nutre a vida com retos alvitres.
Mas isso foge à alçada humana;
um deus decide: ergue um,
sob o peso das mãos, derruba outro;
participa da porfia na medida.
Ganhaste em Mégara e nos campos de Maratona;
nos jogos de Juno, três vezes
vigorou tua força, Aristómenes.

Negros pensamentos,
encaraste quatro corpos caídos;
por anseio de Pito,
amargaram regresso contrário ao teu.
Nem o riso materno suscita regozijo
a seu redor.
Encolhidos nos becos, feridos pelo azar,
os batidos evitam desafetos.

Mas quem logra o novo louro,
pleno
alça o vôo da esperança
nas asas de seu feito.
Não cabe na riqueza a ambição do vencedor.
O prazer humano surge num átimo
e no mesmo hiato declina,
sob o sismo do querer adverso.

Criatura fugaz:
o que é alguém?
O que é ninguém?
Sonho de uma sombra: o homem.
Porém, quando o brilho divino desce,
sobreverbera a luz,
e a vida é doce.

Egina, mãe querida,
protege o livre curso da cidade,
com Zeus, com o rei Éaco,
com Peleu, com Télamon, intrépido, e com Aquiles.


Tradução: Trajano Vieira

quarta-feira, março 19, 2008

Os trabalhos e os dias, vv. 42-105: O Mito de Prometeu e Pandora

Oculto retém os deuses o vital para os homens;
senão comodamente em um só dia trabalharias
para teres em um ano, podendo em ócio ficar;
acima da fumaça logo o leme alojarias,
trabalhos de bois e incansáveis mulas se perderiam.
Mas Zeus encolerizado em suas entranhas ocultou,
pois foi logrado por Prometeu de curvo-tramar;
por isso para os homens tramou tristes pesares:
ocultou o fogo; E de novo o bravo filho de Jápeto
roubou-o do tramante Zeus para os homens mortais
em oca férula, dissimulando-o de Zeus frui-raios.
Então encolerizado disse o agrega-nuvens Zeus:
"Filho de Jápeto, sobre todos hábil em tuas tramas,
apraz-te furtar o fogo fraudando-me as entranhas;
grande praga para ti e para os homens vindouros!
Para esses em lugar do fogo eu darei um mal e
todos se alegrarão no ânimo, mimando muito este mal".
Disse assim e gargalhou o pai dos homens e dos deuses;
ordenou então ao ínclito Hefesto muito velozmente
terra à água misturar e aí pôr humana voz e
força, e assemelhar de rosto às deusas imortais
esta bela e deleitável forma de virgem; e a Atena
ensinar os trabalhos, o polidédaleo tecido tecer;
e à àurea Afrodite à volta da cabeça verter graça,
terrível desejo e preocupações devoradoras de membros.
Aí por espírito de cão e dissimulada conduta
determinou ele a Hermes mensageiro Argifonte.
Assim disse e obedeceram a Zeus Cronida Rei.
Rápido o ínclito Coxo da terra plasmou-a
conforme recatada virgem, por desígnios do Cronida;
Atena, deusa de glaucos olhos, cingiu-a e adornou-a;
deusas Graças e soberana Persuasão em volta
do pescoço puseram colares de ouro e a cabeça,
com flores vernais, coroaram as bem comadas Horas
e Palas Atena ajustou-lhe ao corpo o adorno todo.
Então em seu peito, Hermes Mensageiro Argifonte
mentiras, sedutoras palavras e dissimulada conduta
forjou, por desígnios do baritonante Zeus. Fala
o arauto dos deuses aí pôs e esta mulher chamou
Pandora, porque todos os que têm olímpia morada
deram-lhe um dom, um mal aos homens que comem pão.
E quando terminou o íngreme invencível ardil,
a Epimeteu o pai enviou o ínclito Argifonte
veloz mensageiro dos deuses, o dom levando; Epimeteu
não pensou no que Prometeu lhe dissera jamais dom
do olímpio Zeus aceitar, mas que logo o devolvesse
para mal nenhum nascer aos homens mortais.
Depois de aceitar, sofrendo o mal,ele compreendeu.
Antes vivia sobre a terra a grei dos humanos
a recato dos males, dos difíceis trabalhos,
das terríveis doenças que ao homem põem fim;
mas a mulher, a grande tampa do jarro alçando,
dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares.
Sozinha, ali, a Expectação [Elpís]em indestrutível morada
abaixo das bordas restou e para fora não
voou, pois antes repôs ela a tampa no jarro,
por desígnios de Zeus porta-égide, o agrega-nuvens.
Mas outros mil pesares erram entre os homens;
plena de males, a terra,pleno, o mar;
doenças aos homens, de dia e de noite,
vão e vêm, espontâneas, levando males aos mortais,
em silêncio, pois o tramante Zeus a voz lhes tirou.
Da inteligência de Zeus não há como escapar!

Tradução: Mary de Camargo Neves Lafer

terça-feira, março 18, 2008

Kobayashi Issa

1.
katatsumuri
soro soro nobore
Fuji no yama


Um caracol sobe
lentamente, lentamente
sobe o monte Fuji.

2.

Yo no naka wa
Jigoku no ue no
Hanami kana


Aqui,neste mundo
Acima da Perdição,
contemplando flores.*

* Comentários:
A beleza desse Haikai consiste em sua antítese: enquanto almas sofrem no Inferno, as pessoas acima vivem agradavelmente - contemplando as flores que nascem na primavera. A antítese sugere que, para o poeta, o oposto do Inferno não é o Paraíso: é o próprio mundo dos vivos em um dia em que nascem flores.

Yosa Buson

sabishisa no
ureshiku mo ari
aki no kure



Há na solidão
Felicidade também;
é noite de outono.

Quatro haicais de Bashô

1.
Quatro horas soaram.
Levantei-me nove vezes
Para ver a lua.

2.
Fecho a minha porta.
Silencioso vou deitar-me
Prazer de estar só...

3.
A cigarra...Ouvi:
Nada revela em seu canto
Que ela vai morrer.

4.
Quimonos secando
Ao sol. Oh aquela manguinha
Da criança morta!

Tradução: Manuel Bandeira

domingo, março 16, 2008

Exorcismo

Das relações entre topos e macrotopos
Do elemento suprassegmental,
Libera nos, Domine.


Da semia
Do sema, do semema, do semantema,
Do lexema,
Do classema, do mema, do sentema,
Libera nos, Domine.


Da estruturação semêmica,
Do idioleto e da pancronia científica,
Da realibilidade dos testes psicolingüísticos,
Da análise computacional da estruturação silábica dos falares regionais,
Libera nos, Domine.


Do vocóide,
Do vocóide nasal puro ou sem fechamento consonantal,
Do vocóide baixo e do semivocóide homorgâmico,
Libera nos, Domine.


Da leitura sintagmática,
Da leitura paradigmática do enunciado
Da linguagem fática,
Da fatividade e da não-fatividade na oração principal,
Libera nos, Domine.


Da organização categorial da língua,
Da principalidade da língua no conjunto dos sistemas semiológicos,
Da concretez das unidades no estatuto que dialetaliza a língua,
Da ortolinguagem,
Libera nos, Domine.


Do programa epistemológico da obra,
Do corte epistemológico e do corte dialógico,
Do substrato acústico do culminador,
Dos sistemas genitivamente afins,
Libera nos, Domine.


Da camada imagética
Do estado heterotópico
Do glide vocálico
Libera nos, Domine.


Da lingüística frástica e transfrástica,
Do signo cinésico, do signo icônico e do signo gestual
Da clitização pronomial obrigatória
Da glossemática,
Libera nos, Domine.


Da estrutura exossemântica da linguagem musical
Da totalidade sincrética do emissor,
Da lingüística gerativo-transformacional
Do movimento transformacionalista,
Libera nos, Domine.


Das aparições de Chomsky, de Mehler, de Perchonock
De Saussure, Cassirer, Troubetzkoy, Althusser
De Zolkiewsky, Jacobson, Barthes, Derrida, Todorov
De Greimas, Fodor, Chao, Lacan et caterva
Libera nos, Domine.


Carlos Drummond de Andrade