quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Sherlock Holmes

Não saiu de uma mãe nem soube de ascendentes.
De Adão e de Quijano o caso é igual, decerto.
Está feito de acaso. Imediato ou ao perto,
regem-no os vaivéns de leitores diferentes.

Não é um erro pensar que nasce no momento
em que o vê aquele outro que dirá sua história
e que perece a cada eclipse da memória
de nós que o sonhamos. É mais oco que o vento.

Casto, nada sabe do amor. Foi seu intento.
Esse homem tão viril renunciou à arte
de amar. Em Baker Street vive sozinho e à parte.
Também é alheio a essa outra arte, o esquecimento.

Sonhou-o um irlandês, que não lhe teve afeto
e tentou matá-lo, ao que parece. Em vão.
Vai prosseguindo o homem só, lupa na mão,
sua estranha sorte instável de algo incompleto.

Não cultiva amizades, no entanto abençoa
a devoção ao outro, que foi seu evangelista
e que de seus milagres consignou a lista.
Vive de modo cômodo: em terceira pessoa.

Não vai mais ao banheiro. Tampouco visitava
esse retiro Hamlet, morto na Dinamarca
sem saber quase nada sobre essa comarca
da espada e do mar, do arco e da aljava.

(Omnia sunt plena Jovis. Do mesmo modo, à vera,
diremos desse justo que nome dá aos versos
que sua inconstante sombra percorre os diversos
domínios em que foi parcelada a esfera.)

Atiça na lareira as abrasadas ramas
ou extermina nos páramos um desses cães do inferno.
Esse alto cavalheiro não sabe que é eterno.
Resolve ninharias e repete epigramas.

Chega-nos de uma Londres de gás e de neblina,
da Londres que se sabe capital de um império
que pouco lhe interessa, a Londres de mistério
tranquilo, que não quer perceber que já declina.

Não nos maravilhemos. Depois da agonia,
o fado ou o acaso (que são a mesma coisa)
depara a cada um essa sorte curiosa
de ser ecos ou formas que morrem dia a dia.

Que morrem até um dia final em que o olvido,
que é a meta comum, esqueça-nos de todo.
Antes que nos alcance, brinquemos com o lodo
de ser durante um tempo, de ser e de ter sido.

Dos bons costumes que nos restam um é pensar
tarde após tarde em Sherlock Holmes. A morte
e a sesta são outros. Também é nossa sorte
convalescer em um jardim ou a lua contemplar.

Jorge Luis Borges


Tradução: Josely Vianna Baptista
Fonte: BORGES, J.L. Jorge Luis Borges, Obras Completas, volume 3. São Paulo: Globo, 1999.

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