quinta-feira, dezembro 26, 2024

Niterói - Metamorfose do Rio de Janeiro (versos 1-25) - Januário da Cunha Barbosa (1780-1846)

 Nos braços maternais, nascido apenas,

Jazia Niterói, satúrnea prole,

Quando Mimas, seu pai, gigante enorme

Que ao céu com mão soberba arremessara

A flamígera Lemnos, arrancada

Dos mares no furor da guerra ímpia,

Tingiu de sangue as águas, salpicando

De seu cérebro o Ossa, o Olimpo e o Ótris,

Ferido pelo ferro com que Marte

Vingou de Jove a injúria em morte acerba. 


Lamentando-se, Atlântida, apertava

Ao peito o filho, pálida, temendo

Trissulcos raios que inda acesos via.

Ouviu seu pranto o rei do argênteo lago

E o tenro infante, compassivo, acolhe.

No choque horrível, que dos Flegros Campos, 

O mundo sobre os polos abalara,

Surgiram novas terras, novos mares,

Cobriram reinos, ilhas, cabos, brenhas.

Netuno aponta a plaga rica e vasta,

Do sepulcro do sol, erguida há pouco,

Inda mádida e nova, inda ignorada

Dos homens e do mundo; aqui se abriga

A estirpe ilustre, em Mimas profligada,

Que o justo e paternal intento herdara. 


FONTE: ALVAREZ, Beethoven (edição, introdução, notas e posfácio). Niterói - Poema de Januário da Cunha Barbosa. Rio de Janeiro: Telha, 2023. 

terça-feira, dezembro 24, 2024

Canção Noturna do Andarilho (Tradução de Nelson Ascher)

Über allen Gipfeln,
Ist Ruh,
Im allen Wipfeln,
Spürest du
Kaum einem Hauch;
Die Vögelein schweigen im Walde
Warte nur, balde
Ruhest du auch

 Nas cristas alpinas

há paz

Nem sopro aqui nas

frondes hás

de ouvir. Detêm-

se os pios no bosque. Espera: deve

chegar-te em breve

a paz também. 


 Ponham na minha sepultura

    Aqui jaz, sem cruz,

    Alberto Caeiro

    Que foi buscar os deuses...

    Se os deuses vivem ou não, isso é convosco.

    A mim, deixei que me recebessem.


domingo, setembro 01, 2024

Quando vier a primavera (Alberto Caeiro)


Quando vier a primavera,
Se eu já estiver morto, 
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada,
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

quinta-feira, junho 27, 2024

Animula vagula blandula -- tradução de Nelson Ascher

Públio Élio Adriano (76-138, Imperador de Roma) 

Alminha gentil de partida,
conviva do corpo e parceira,
lá aonde irás ter em seguida,
vais lívida, imóvel, despida,
não mais, como outrora, faceira. 


 PUBLIUS AELIUS HADRIANUS

 Animula, vagula, blandula
Hospes comesque corporis
Quae nunc abibis in loca
 Pallidula, rigida, nudula,
 Nec, ut soles, dabis iocos.

domingo, abril 14, 2024

Ésquilo - Fragmento 70

Ζεύς ἐστιν αἰθήρ, Ζεὺς δὲ γῆ, Ζεὺς δ’ οὐρανός 
Ζεύς τοι τά πάντα χὤ τι τῶνδ’ ὑπέρτερον. 

Zeus é o firmamento, Zeus é a terra, Zeus é o céu. 
Zeus é tudo, e o que mais existir além disso.

[Trad. Rafael Brunhara]

sábado, abril 06, 2024

Ezra Pound, Cantares, XLV - Com Usura - Tradução de Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari



Com usura nenhum homem tem casa de boa pedra

blocos lisos e certos

que o desenho possa cobrir,

com usura

nenhum homem tem um paraíso pintado na parede de sua igreja

harpes et luz 

ou onde a virgem receba a mensagem

e um halo se irradie do entalhe,

com usura

ninguém vê Gonzaga seus herdeiros e concubinas

nenhum quadro é feito para durar e viver conosco,

mas para vender, vender depressa,

com usura, pecado contra a natureza,

teu pão é mais e mais feito de panos podres

teu pão é um papel seco,

sem trigo do monte, sem farinha pura

com usura o traço se torna espesso

com usura não há clara demarcação

e ninguém acha lugar para sua casa.

Quem lavra a pedra é afastado da pedra

o tecelão é afastado do tear

COM USURA

a lã não chega ao mercado

a ovelha não dá lucro com a usura

A usura é uma praga,

a usura embota a agulha dos dedos da donzela

tolhe a perícia da fiandeira. Pietro Lombardo

não veio da usura

Duccio não veio da usura

nem Pier della Francesca, nem Zuan Bellini veio

nem Usura pintou "La Callunia"

Angélico não veio da usura, Ambrogio Praedis não veio,

Nenhuma igreja de pedra lavrada, com a inscrição: Adamo me fecit

Nenhuma St. Trophime

Nenhuma St. Hilaire

Usura enferruja o cinzel

Enferruja a arte e o artesão

Rói o fio no tear

Mulher alguma aprende a urdir o ouro em sua trama;

A Usura é um câncer no azul; o carmesim não e bordado,

O esmeralda não encontra um Memling.

Usura mata a criança no ventre

Detém o galanteio do moço

Ela trouxe paralisia ao leito, jaz

entre noivo e noiva

                      CONTRA NATURAM

Putas para Elêusis

Cadáveres no banquete

a comando da Usura


Nota. Uma taxa pelo uso do poder de compra, cobrada sem levar em conta a produção, muitas vezes sem levar em conta as possibilidades de produção (daí o fracasso do banco Medici)


Fonte. AUGUSTO DE CAMPOS (Intr., org., notas) Ezra Pound: Cantares. São Paulo: Cobalto, 2024.