domingo, setembro 01, 2024

Quando vier a primavera (Alberto Caeiro)


Quando vier a primavera,
Se eu já estiver morto, 
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada,
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

quinta-feira, junho 27, 2024

Animula vagula blandula -- tradução de Nelson Ascher

Públio Élio Adriano (76-138, Imperador de Roma) 

Alminha gentil de partida,
conviva do corpo e parceira,
lá aonde irás ter em seguida,
vais lívida, imóvel, despida,
não mais, como outrora, faceira. 


 PUBLIUS AELIUS HADRIANUS

 Animula, vagula, blandula
Hospes comesque corporis
Quae nunc abibis in loca
 Pallidula, rigida, nudula,
 Nec, ut soles, dabis iocos.

domingo, abril 14, 2024

Ésquilo - Fragmento 70

Ζεύς ἐστιν αἰθήρ, Ζεὺς δὲ γῆ, Ζεὺς δ’ οὐρανός 
Ζεύς τοι τά πάντα χὤ τι τῶνδ’ ὑπέρτερον. 

Zeus é o firmamento, Zeus é a terra, Zeus é o céu. 
Zeus é tudo, e o que mais existir além disso.

[Trad. Rafael Brunhara]

sábado, abril 06, 2024

Ezra Pound, Cantares, XLV - Com Usura - Tradução de Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari



Com usura nenhum homem tem casa de boa pedra

blocos lisos e certos

que o desenho possa cobrir,

com usura

nenhum homem tem um paraíso pintado na parede de sua igreja

harpes et luz 

ou onde a virgem receba a mensagem

e um halo se irradie do entalhe,

com usura

ninguém vê Gonzaga seus herdeiros e concubinas

nenhum quadro é feito para durar e viver conosco,

mas para vender, vender depressa,

com usura, pecado contra a natureza,

teu pão é mais e mais feito de panos podres

teu pão é um papel seco,

sem trigo do monte, sem farinha pura

com usura o traço se torna espesso

com usura não há clara demarcação

e ninguém acha lugar para sua casa.

Quem lavra a pedra é afastado da pedra

o tecelão é afastado do tear

COM USURA

a lã não chega ao mercado

a ovelha não dá lucro com a usura

A usura é uma praga,

a usura embota a agulha dos dedos da donzela

tolhe a perícia da fiandeira. Pietro Lombardo

não veio da usura

Duccio não veio da usura

nem Pier della Francesca, nem Zuan Bellini veio

nem Usura pintou "La Callunia"

Angélico não veio da usura, Ambrogio Praedis não veio,

Nenhuma igreja de pedra lavrada, com a inscrição: Adamo me fecit

Nenhuma St. Trophime

Nenhuma St. Hilaire

Usura enferruja o cinzel

Enferruja a arte e o artesão

Rói o fio no tear

Mulher alguma aprende a urdir o ouro em sua trama;

A Usura é um câncer no azul; o carmesim não e bordado,

O esmeralda não encontra um Memling.

Usura mata a criança no ventre

Detém o galanteio do moço

Ela trouxe paralisia ao leito, jaz

entre noivo e noiva

                      CONTRA NATURAM

Putas para Elêusis

Cadáveres no banquete

a comando da Usura


Nota. Uma taxa pelo uso do poder de compra, cobrada sem levar em conta a produção, muitas vezes sem levar em conta as possibilidades de produção (daí o fracasso do banco Medici)


Fonte. AUGUSTO DE CAMPOS (Intr., org., notas) Ezra Pound: Cantares. São Paulo: Cobalto, 2024. 

terça-feira, março 05, 2024

Catulo, Poema 69 - Tradução de Rafael Frate

 Não se impressione pelo fato de mulher nenhuma,

Rufo, querer trancá-lo em suas macias coxas,

nem mesmo se você a estimular com roupas caras,

ou com algum regalo e pedras cintilantes.

é que o afeta um mau rumor nocivo, que declara

que habita um feroz bode sob o seu sobaco.

Todos o temem. Nem é de admirar, pois é um bicho

terrível, com quem moça nenhuma quer estar.

Por isso, acabe logo co’ esta peste atroz para os narizes,

ou o 'por que todas fogem?' não o impressione mais.


Noli admirari quare tibi femina nulla,

Rufe, velit tenerum supposuisse femur,

non si illam rarae labefactes munere vestis

aut perluciduli deliciis lapidis.

laedit te quaedam mala fabula, qua tibi fertur

valle sub alarum trux habitare caper.

hunc metuunt omnes; neque mirum: nam mala valdest

bestia, nec quicum bella puella cubet.

quare aut crudelem nasorum interfice pestem,

aut admirari desine cur fugiant.


segunda-feira, fevereiro 26, 2024

A Ilha Lacustre - Ezra Pound (Trad. Dirceu Villa)

 A ILHA LACUSTRE

Ó Deus, Ó Vênus, Mercúrio, senhor dos ladrões,
Me dêem na hora certa, eu imploro, uma pequena tabacaria
Com as caixinhas brilhantes
empilhadas com capricho nas prateleiras
E o cavendish de suave fragrância
o tabaco picado,
E o brilhante Virginia
avulso nas vitrines brilhantes,
E duas balanças sem muita gordura,
E as putas que chegam pra dois dedos de conversa, de passagem,
Pra jogar conversa fora, e dar um jeito no cabelo.
Ó Deus, Ó Vênus, Mercúrio, senhor dos ladrões,
Me emprestem uma pequena tabacaria,
ou me ponham em qualquer profissão
Salvo esta maldita de escrever,
onde é preciso ter miolos todo o tempo.

.

THE LAKE ISLE
O God, O Venus, O Mercury, patron of thieves,
Give me in due time, I beseech you, a little tobacco-shop,
With the little bright boxes
piled up neatly upon the shelves
And the loose fragrant cavendish
and the shag,
And the bright Virginia
loose under the bright glass cases,
And a pair of scales not too greasy,
And the whores dropping in for a word or two in passing,
For a flip word, and to tidy their hair a bit.
O God, O Venus, o Mercury, patron of thieves,
Lend me a little tobacco-shop,
or install me in any profession
Save this damn’d profession of writing,
where one needs one’s brains all the time.


VILLA, Dirceu. Ezra Pound. Lustra. São Paulo: Demônio Negro/Annablume, 2011. 


domingo, fevereiro 25, 2024

A água-furtada (Ezra Pound, trad. Mário Faustino)

 Vamos, lamentemos os que estão em  melhor

          situação que a nossa. 

Vamos, meu amigo, e lembra-te:

    os ricos têm mordomos e não têm amigos,

E nós temos amigos e não temos mordomos.

Vamos, lamentemos os casados e os solteiros.


A Aurora entra com pés pequenos,

    Pavlova dourada,

E estou perto do meu desejo.

E a vida não tem nada melhor

Que esta hora de claro frescor,

    a hora de acordar juntos. 


(LUSTRA, 1916) 


Fonte:

CAMPOS,A; CAMPOS, H.; FAUSTINO, M.; GRÜNEWALD, J.L. PIGNATARI, D. (org., trad.) Ezra Pound: Poesia. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 1983. 


domingo, fevereiro 04, 2024

Catulo, 37 - Tradução de Rafael Frate

Catulo na casa de Lésbia. Lawrence Alma-Tadema (1865). 


Taberna suja e todos camaradas,

nono pilar dos gêmeos de barrete,

acham que só vocês têm uma pica,

que só vocês podem comer qualquer

menina e achar que os outros são uns bodes?

Ou porque bem sentados, comportados,

cem ou duzentos idiotas, não acreditam

que eu ouse arrombar duzentos machos?

Mas acreditem: pois hei de escrever

na frente da taberna pixos a cada um de vocês.

Pois minha menina, que fugiu de meu regaço,

amada tanto quanto nenhuma há de ser,

por quem lutei tantas tão grandes batalhas,

está sentada aí. Vocês, gente de bem,

todos a amam, certo, o que é indecente,

todos miúdos, metelões de putas pelos becos.

E dentre todos cabeludos, mais que todos, você,

da Celtibéria coelhuda filho,

Egnácio, que a espessa barba torna belo

e tem os dentes esfregados em mijo ibérico.

quinta-feira, janeiro 04, 2024

Nós (Ana Martins Marques)

 E cá

estamos

eu

pronome

tu 

pronome

no lugar de 

nós

(Ardendo

procuro teu corpo

mas só encontro palavras:

estas)


Ana Martins Marques. Da Arte das Armadilhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

terça-feira, janeiro 02, 2024

Torna-Viagem (Ana Martins Marques)

 meço mares

singro sereias

cego ciclopes

perco penélopes

cerco circes

serei meu

próprio

porto 


Ana Martins Marques. A Arte das Armadilhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

segunda-feira, janeiro 01, 2024

Arquíloco - Fragmentos 131 e 132

131 

Assim da gente mortal, Glauco, filho de Léptines,
é o coração: conforme o dia que Zeus traz

 τοῖος ἀνθρώποισι θυμός, Γλαῦκε Λεπτίν<εω> πάϊ,
 γίνεται θνητοῖς, ὁποίην Ζεὺς ἐφ' ἡμέρην ἄγηι. 


132 

 E pensam conforme os atos que encontram 

καὶ φρονέουσι τοῖ' ὁποίοις ἐγκυρέωσιν ἔργμασιν.


Traduções: Rafael Brunhara

Referência
WEST, Martin L. Iambi et Elegi Graeci Ante Alexandri Cantati. Oxford: Clarendon Press, 1971. 2 vols.