sábado, fevereiro 29, 2020

Os Filhos de Tupã - José de Alencar


I
Ao deserto, minh'alma! Sôbre os píncaros
Da branca penedia, e enquanto o vento
Nos antros da montanha ulula e brame,
Solte a rude pocema o canto fero
Dos filhos de Tupã. E ruja a inúbia
Troando pela várzea os sons bravios.

II
Salve, Amazonas! Rei dos reis das águas,
Iumuí dos rios, filhos do dilúvio!
Mar, que do bôjo golfas tantos mares,
Fonte do abismo que sorveu a América,
E mais tarde, -quem sabe? -há de sumi-la.
Salve, Amazonas! Como o sol és único,
Gigante, que o maior dos oceanos
Gerou nos flancos da maior montanha!
Monstro vorace, o mundo tragarias
Se Deus, te sofreando a fúria indômita,
Não curvara em princípio o vasto Atlântico,
E só para contar-te a imensidade.
És origem do líquido elemento
Que circunda o universo? Es tu que pejas
Do pélago sem fim as profundezas,
Onde matam a sêde o céu e a terra?
És pai das ondas, ou tirano delas?
Colosso ingente, que fundiu em águas
O verbo de um artista onipotente,
A cabeça reclina sôbre os Andes
Ao céu rasgando as largas cataratas;
O dorso enorme ressupino estendes
Pela terra que verga com teu pêso;
Os mil braços, que alongas pelas serras,
Abrangem tanto espaço que outros mundos
Couberam inda neste mundo nôvo,
Feito para teu berço. Com desprêzo
Aos pés o colo esmagas do oceano,
Que mugindo se roja pelas praias;
Mas prostrado e vencido, não vassalo,
O mar soberano às vêzes se revolta.
Alçada a fronte, a juba desgrenhada,
S'eriça e raia e ruge e ronca e troa;
E a longa, imensa cauda destorcendo,
Te enlaça o corpo no impotente esfôrço.

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