segunda-feira, março 25, 2019

Safo, fragmento 31 - Tradução de Adriano Aprigliano

Parece a mim aquele igual aos Deuses,
o homem que se senta a tua frente
e ouve-te de perto docemente
enquanto palavreias

e ris amavelmente, o que no peito
meu coração já faz que todo frema.
Pois, basta que te veja brevemente,
que voz não mais me venha.

É como se me arrebentasse a língua,
corresse fino fogo pele adentro,
co’ os olhos vejo nada e meus ouvidos
zunindo vão por dentro;

suor me cobre frio e tremedeira
me toma inteira, verde mais que relva
me acho, e de estar morta já bem perto
pareço-me a mim mesma.

Mas há que se enfrentar a tudo...

domingo, março 24, 2019

Medeia - Sophia de Mello Breyner Andresen e Ovídio (Metamorfoses, VII. 189-206)

Medeia
(adaptado de Ovídio)

Três vezes roda, três vezes inunda
Na água da fonte os seus cabelos leves,
Três vezes grita, três vezes se curva
E diz: "Noite fiel aos meus segredos,
Lua e astros que após o dia claro
Iluminais a sombra silenciosa,
Tripla Hecate que sempre me socorres
Guiando atenta o fio dos meus gestos,
Deuses dos bosques, deuses infernais
Que em mim penetre a vossa força, pois
Ajudada por vós posso fazer
Que os rios entre as margens espantadas
Voltem correndo até às suas fontes.
Posso espalhar a calma sobre os mares
Ou enchê-los de espuma e fundas ondas,
Posso chamar a mim os ventos, posso
Largá-los cavalgando nos espaços.
As palavras que digo e cada gesto
Que em redor do seu som no ar disponho
Torcem longínquas árvores e os homens
Despedaçam-se e morre no seu eco.
Posso encher de tormento os animais,
Fazer que a terra cante, que as montanhas
Tremam e que floresçam os penedos.

Fonte: Sophia de Mello Breyner Andresen. Obra Poética. Lisboa: Tinta da China, 2018.

Metamorfoses, Canto VII, versos 189-205

ter se convertit, ter sumptis flumine crinem
inroravit aquis ternisque ululatibus ora 
solvit et in dura submisso poplite terra
'Nox' ait 'arcanis fidissima, quaeque diurnis
aurea cum luna succeditis ignibus astra,
tuque, triceps Hecate, quae coeptis conscia nostris
adiutrixque venis cantusque artisque magorum,
quaeque magos, Tellus, pollentibus instruis herbis,
auraeque et venti montesque amnesque lacusque,
dique omnes nemorum, dique omnes noctis adeste,
quorum ope, cum volui, ripis mirantibus amnes
in fontes rediere suos, concussaque sisto, 
stantia concutio cantu freta, nubila pello
nubilaque induco, ventos abigoque vocoque,
vipereas rumpo verbis et carmine fauces,
vivaque saxa sua convulsaque robora terra
et silvas moveo iubeoque tremescere montis 
et mugire solum manesque exire sepulcris!

Trad. Domingos Lopes Dias (2017):

Medeia se voltou três vezes. Três vezes aspergiu o cabelo
com água colhida do rio. Soltou três imprecações.
E, ajoelhando na terra dura, clama:
"Ó noite amiga fiel dos mistérios; douradas estrelas
que, com a lua, sucedeis os raios do dia; 
e tu, Hécate de três cabeças, que, conhecedora dos meus intentos,
vens em meu auxílio, tu, mestra dos encantamentos e das artes mágicas;
terra, que aos magos propicias ervas eficazes;
brisas e ventos, montes, rios e lagos;
deuses todos da floresta; todos os deuses da noite, vinde!
Com vossa ajuda, quando assim o quis, tornaram à nascente os rios,
com espanto das margens. Com meus encantamentos
acalmo o mar encapelado e encrespo o mar calmo;
disperso as nuvens e volto a acumulá-las; disperso e convoco os ventos.
Com os meus conjuros e encantamentos anulo as fauces da víbora,
arranco ao solo e ponho em movimento a rocha viva,
o carvalho e a floresta; abalo as montanhas
e faço a terra rugir e os mortos surgir do sepulcro.

FONTE: Ovídio. Metamorfoses. Tradução, introdução e notas de Domingos Lopes Dias; Apresentação de João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora 34, 2017. 





domingo, março 17, 2019

Entusiasmo - Cecília Meireles

Por uns caminhos extravagantes,
irei ao encontro desses amores
-- por que suspiro -- distantes.

Rejeito os vossos, que são de flores.
Eu quero as vagas, quero os espinhos
e as tempestades, senhores.

Sou de ciganos e de adivinhos.
Não me conformo com os circunstantes
e a cor dos vossos caminhos.

Ide com os zoilos e os sicofantes.
Mas respeitai vossos adversários,
que nem querem ser triunfantes.

Vou com sonâmbulos e corsários,
poetas, astrólogos e a torrente
dos mendigos perdulários.

E cantamos fantasticamente,
pelos caminhos extravagantes,
para Deus, nosso parente.

De Retrato Natural, in Flor de Poemas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. 

sexta-feira, março 15, 2019

Arquíloco - fr.51B./ fr.130W

Fragmento 51 (Edição de T.Bergk, Anthologia Lyrica, 1907)

τοῖς θεοῖς τίθειν ἁπάντα· πολλάκις μὲν ἐκ κακῶν
ἄνδρας ὀρθοῦσιν μελαίνηι κειμένους ἐπὶ χθονί,
πολλάκις δ' ἀνατρέπουσι καὶ μάλ' εὖ βεβηκότας
ὑπτίους, κείνοις <δ'> ἔπειτα πολλὰ γίνεται κακά,
καὶ βίου χρήμηι πλανᾶται καὶ νόου παρήορος.

Confia tudo aos deuses: muitas vezes dos males
erguem os homens sobre a terra negra prostrados;
e, muitas vezes, os que estão firmes eles viram
do avesso; então lhes vêm muitos males,
[o homem] vaga sem meios e fora de si.

[Trad. Rafael Brunhara]

Fragmento 130 (Edição de M.West, Elegi et Iambi Graeci I 1971)


τοῖς θεοῖς †τ' εἰθεῖάπαντα· πολλάκις μὲν ἐκ κακῶν
ἄνδρας ὀρθοῦσιν μελαίνηι κειμένους ἐπὶ χθονί,
πολλάκις δ' ἀνατρέπουσι καὶ μάλ' εὖ βεβηκότας
ὑπτίους, κείνοις <δ'> ἔπειτα πολλὰ γίνεται κακά,
καὶ βίου χρήμηι πλανᾶται καὶ νόου παρήορος.

Aos deuses tudo é reto: muitas vezes dos males
erguem os homens sobre a terra negra prostrados;
e, muitas vezes, os que estão firmes eles viram
do avesso; então lhes vêm muitos males,
[o homem] vaga sem meios e fora de si.

sexta-feira, março 08, 2019

Ressurgiremos

Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos
E em Delphos centro do mundo
Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta

Ressurgiremos ali onde as palavras
São o nome das coisas
E onde são claros e vivos os contornos
Na aguda luz de Creta

Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo
São o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a terra de frente
Na luz limpa de Creta

Pois convém tornar claro o coração do homem
E erguer a negra exactidão da cruz
Na luz branca de Creta

[Sophia de Mello Breyner Andresen in Obra Poética. Rio de Janeiro: Tinta da China, 2018)